“Todos nós somos humanos e monstros ao mesmo tempo”

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

ENTREVISTA: Ator José Neto Barbosa fala sobre o espetáculo A Mulher Monstro, a interação com o público, a expectativa para a turnê de 8 anos e a relação com Pernambuco.

Por Paulo Ricardo Mendes

Neste mês de abril, os pernambucanos terão a oportunidade de rever o premiado espetáculo A Mulher Monstro, da S.E.M Cia. de Teatro, interpretado pelo ator José Neto Barbosa. A peça, que já foi vista por mais de 30 mil pessoas, desembarcou no Recife na sexta-feira (12), no Teatro Arraial, no Recife, para uma temporada de seis sessões, que segue até o dia 27. As apresentações fazem parte da turnê comemorativa de 8 anos, e logo em seguida, o espetáculo irá circular pelo Rio de Janeiro e no Festival de Cinema de Goiás.

A Mulher Monstro foi baseada no conto Creme de Alface, do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu, e traz ao palco declarações e situações polêmicas acometidas nas redes sociais, por políticos e algumas figuras públicas; além disso, a dramaturgia é inspirada também na figura da Monga, atração bastante conhecida nos parques e circos nordestinos. A peça acumula alguns prêmios na bagagem, entre eles, o de Melhor Monólogo do Teatro Nacional pela Academia de Artes no Teatro do Brasil, Melhor Ator e Melhor Espetáculo do Festival Internacional Janeiro de Grandes Espetáculos. Também fez passagem por festivais nacionais relevantes, como o Festival de Inverno de Garanhuns/PE, Festival de Curitiba/PR e Festival de Guaramiranga/CE.

Nesta entrevista à Vendo Teatro, o ator José neto Barbosa fala sobre A Mulher Monstro, a interação com o público, a expectativa para a turnê de 8 anos e a relação com Pernambuco. Confira:

VENDO TEATRO: Como surgiu a ideia de fazer uma turnê pelo Brasil com o espetáculo A Mulher Monstro?
JOSÉ NETO BARBOSA: A gente sempre teve o costume de apresentar em diversas regiões do país, com ou sem patrocínio. Fomos convidados por um Festival de Cinema de Goiás, chamado DIGO, ao mesmo passo que já faríamos uma circulação no Rio de Janeiro pelo SESC. Ainda, fomos convidados para um Festival da Bahia, mas, por conflito de datas não conseguimos incluir na turnê. Unir todas essas circulações com uma temporada no estado de estreia do espetáculo foi oportuno para consolidarmos uma turnê, que comemora os 08 anos de A Mulher Monstro, passando por três regiões do Brasil: Nordeste, Sudeste e Centro Oeste.

VENDO TEATRO: Qual a sua relação com a capital pernambucana?
JOSÉ NETO BARBOSA: Sou radicado no Recife desde 2014, onde fui muito bem acolhido. Vim para trabalhar com arte-educação na Prefeitura do Recife. Depois, fui convidado para assumir a gestão das políticas culturais do Teatro e da Ópera do Governo de Pernambuco, período que passei em torno de 07 anos me dedicando à construção de ações públicas. Ações essas que hoje já fazem parte da realidade da cadeia produtiva das artes cênicas pernambucana. Estando aqui, ampliei a minha investigação no teatro e na arte-militância junto aos movimentos sociais tão pulsantes na cidade. E foi assim, por exemplo, que criei aqui o espetáculo A Mulher Monstro, na antiga sede da S.E.M. Cia. de Teatro, no bairro do Recife. Essa sede, inclusive, funcionou no 2º andar da antiga Boate Moeda. Foram poucos meses que tivemos condições de se manter por lá, mas o suficiente para criarmos a obra entre outras ações formativas. Atualmente, fui convidado para apresentar um Programa de TV no Rio Grande do Norte, na minha cidade Natal, e isso tem me demandado viajar bastante para lá. O que se soma aos outros compromissos de trabalho, até porque grande parte da minha rede de afetos é residente por lá. Entretanto, me mantenho sempre estando por aqui em casa quando é possível. Desde que deixei o ofício como agente público, tenho levado a vida por aqui de forma mais discreta, viajando bem mais entre as cidades e me dedicando intensamente aos meus projetos como ator.

VENDO TEATRO: Qual a expectativa para essa temporada no Recife?
JOSÉ NETO BARBOSA: São as melhores possíveis. Vamos apresentar em um Teatro pequenino, mas aconchegante. Faremos seis sessões, que possibilitam alcançarmos um bom público, que sempre se faz presente nas nossas sessões.

VENDO TEATRO: O espetáculo está sempre em transformação, né? Como é esse processo de atualização da peça?
JOSÉ NETO BARBOSA: Acredito em um teatro vivo, que se transforma e que se discute os tempos, como nos incitou Nina Simone. Particularmente me considero um ator popular, que, independente das estéticas adotadas para um trabalho, faz teatro para o povo. Isso automaticamente me obriga ao diálogo. Não tenho apegos à criação cênica, em viver o experimento, a brincadeira. Na criação da obra somos amparados pelos olhares profissionais de algumas pessoas para constantes revisões dramatúrgicas, falo de parceiros de trabalho que representam segmentos e requisitos sociais, para entender os respectivos lugares de fala. Sem esquecer da conversa intensa que estabeleço com o público, seja nas redes sociais ou após as sessões. É um espetáculo que expõe o “mau” em cena, e credito a necessidade de estar sempre atualizando à responsabilidade de afinamento do discurso. Certamente, o espetáculo lá de 2016 não tinha a assertividade que temos hoje.

VENDO TEATRO: Quem é aquela personagem que está em cena?
JOSÉ NETO BARBOSA: Uma falsa religiosa, uma mulher cisgênero, burguesa, e que reúne em si a vileza presente nos preconceitos estruturais, na violência da intolerância. Uma curiosidade é que há uma tríade, ouso dizer, nessa relação entre ator e personagem. Entre nós há a minha expressão drag queen, que se acha Morfina. Para chegar na maquiagem de A Mulher Monstro passo pela maquiagem da minha drag. E é por isso até que A Mulher Monstro não possui um nome próprio. É mais ou menos assim: eu, enquanto drag, me visto ironicamente da personagem do espetáculo. Então, essa personagem é, antes de tudo, uma grande sátira, construída para incomodar.

VENDO TEATRO: Qual o principal desafio de se estar em cena interpretando aquela personagem?? O que você aprendeu com ela??
JOSÉ NETO BARBOSA: Por ser um espetáculo que estabelece interações diretas com a plateia, a sensação é de pular em um abismo sem saber o que me espera. É desafiador. Embora eu estruture a encenação para causar os sentimentos de forma desenhada, o público sempre será público e nunca sabemos de fato o que esperar das pessoas. Com a personagem, aprendi simplesmente a não ser ela, a me policiar quando minimamente me vejo pensando as coisas horrendas que ela fala. E acho que esse não é um aprendizado só meu, as pessoas que assistem ficam mais vigilantes à reprodução das violências cotidianas verbais.

VENDO TEATRO: Quando pensou A Mulher Monstro, qual a mensagem que você queria passar?
JOSÉ NETO BARBOSA: Queria que as pessoas entrassem no teatro e se vissem através de um espelho. Assim como o tio de Hamlet ao assistir uma trupe encenando suas próprias atitudes, na obra de Shakespeare. Sempre quis que as pessoas pudessem assistir toda aquela monstruosidade dentro de uma jaula e que refletissem em quais outras subjetivas jaulas estão presas. Que todas aquelas palavras e atitudes possam estar atrás das grades, bem como seus reprodutores. Construí o espetáculo para causar gatilhos emocionais cheios de metáforas até nas mais pequenas escolhas de cena, de elementos visuais ou sonoros. É uma obra difícil, na qual o riso nem sempre é um mero riso.

VENDO TEATRO: Se pudesse resumir o espetáculo em uma frase, qual seria? E se pudesse definir um gênero para a peça, qual seria?
JOSÉ NETO BARBOSA: O gênero é a tragicomédia. Resumir em uma frase eu não consigo. É um grau altíssimo de complexidade. Vou ficar devendo essa. (Risos)

VENDO TEATRO: Como você observa a receptividade do público ao assistir a peça?
JOSÉ NETO BARBOSA: Há uma estratégia de comunicação e marketing por trás da nossa produção. Muitas vezes as pessoas entram no teatro achando que vão assistir uma mera comédia. É que o entretenimento de modo geral vende quando está posta a figura drag queen. Mas, nessa estratégia de investigar o humor causamos uma reflexão a cerca dos seus limites. Sim, o humor pode ser extremamente cruel. Incitamos as pessoas a revelarem o seu lado monstruoso, assim o espetáculo acontece na plateia. Mas, ao longo dos atos causamos uma reflexão sobre o quanto podemos apodrecer ou já estar podre por dentro. Todos nós somos humanos e monstros ao mesmo tempo, é uma bivalência. O público então rir, se choca, chora e sai extremamente reflexivo. Como falei: é uma obra que gera incômodo. Na verdade, o público tem amado essa fórmula, ou melhor, essa proposta de encenação.

VENDO TEATRO: Você já se apresentou em diversos lugares ao longo desses anos com o espetáculo, qual o momento mais especial que você viveu?
JOSÉ NETO BARBOSA: Foi em Curitiba. Na ocasião, quase 4 mil pessoas me assistindo. Um recorde. Exatamente no dia em que se completara 100 dias da prisão do Presidente Lula na lá cidade. O espetáculo transcendeu seu próprio intuito. Sinto que, naquele dia, vivi um verdadeiro movimento social de protesto, de luta e de sobrevivência no auge do Governo Bolsonaro. Foi a primeira vez que apresentei com seguranças no palco, tendo que andar escoltado por receber ameaças de agressões e de morte. Fui perseguido pela milícia digital também. Bem, foi assustador. Mas, o acolhimento do público, o amor e o orgulho de se fazer voz num momento marcado na história da política nacional, tornaram essa passagem pelo Paraná uma das mais significativas da minha trajetória.

VENDO TEATRO: Um recado final para os admiradores do seu trabalho e para quem pretende ir assistir à peça.
JOSÉ NETO BARBOSA: Quero agradecer por todo o acolhimento todos esses anos de espetáculo. Por me fazerem sentir vivo, por me valorizarem como artista e, principalmente, por se permitirem atravessar pela minha mensagem com essa obra. Caso alguém queira saber os próximos passos do espetáculo, basta me seguir no Instagram: @josenetobarbosa.

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