Velhas mentiras, Tragédias hodiernas | Crítica de A Número Um

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Junho de 2023

“O direito é o substituto do amor”, ao contrário da tradição que sustento ao iniciar os textos sob minha autoria com uma epígrafe, trago a citação de um autor, cujo nome não me recordo, mas lembro que seus estudos estão relacionados às investigações dos ordenamentos jurídicos. É minimamente curioso o pensamento desse autor, aqui pondo em cheque um dos elementos que sustentam a realidade crível e mais ou menos estável em que vivemos.

Se, por um lado, observamos esse ser estranho, o amor, como entidade fundamental entre as relações mais íntimas, por outro, temos o direito como elemento de elo e sustentação entre as relações mais variadas nas micro e macro esferas. Porém, descortina-se um fato fundamental: ambos são ficções.

Harari, em seu livro “Homo Sapiens”, aponta que “não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça fora da imaginação coletiva dos seres humanos”, nem amor ou qualquer entidade essencialmente não palpável e dependente exclusivamente da cognoscibilidade intrínseca ao indivíduo e seus instintos de formação social. Por outro ponto de vista, entretanto, a essência ficcional não descaracteriza a excelência da verdade presente nestes elementos, visto serem ficções porque críveis e críveis porque presentes na percepção individual — e por vezes coletiva — de verdade.

A partir deste mote, o amor e a ficção encontram-se na teatralidade em dueto do Coletivo À Flor da Pele, sob a direção de Rauani Castro e a assistência de Guilherme Soares. Por um viés diferente dos demais espetáculos apresentados pelo coletivo, “A Número Um” busca estabelecer uma relação mais intimista entre o público e os atores, além de propor uma possibilidade de universo compartilhado com os espetáculos, pois as personagens desta encenação são as mesmas existentes no espetáculo “Demétrio”.

Seguindo por esse caminho mais intimista, portanto, os atores no palco — Dany Brito e Lucas Lopes — entregam-se à cena e agem em sintonia com os elementos de iluminação e objetos cênicos. Entretanto, cabe ressaltar que a teatralidade propõe o cru, sem maquiagens extravagantes, pouquíssimos objetos de cena, o desempenho do ator como o principal elemento de construção ficcional e as luzes como mecanismos de transição.

Aliás, cabe um destaque sobre a iluminação, antes de qualquer outra consideração. A escolha das paletas de cores entre o primaveril inocente e puro e o outono abatido e doente foi assertiva para conferir maior imersão nos sentimentos que pulsavam e regiam as encenações. Fizeram-se presentes em cena o rosa apaixonado e leve; o vermelho colérico, o azul marinho murmuroso; o roxo energicamente caótico; e o laranja repulsivo e doentio. Por meio dessas cores, o enredo se desenvolve e é amarrado, juntamente com os blackouts e, é claro, a sonoplastia de valsas, como a Número 1. A transição entre as cores e seus contrastes potencializam o desempenho e os objetivos de cena, proporcionando maior possibilidade de imersão na obra.

Também cabe destacar brevemente a importância dos poucos objetos de cena, os quais são mais do que objetos; estão vivos em cena. Dois véus, um par de botas, uma maleta, uma garrafa e uma pistola. Bastam. Eles não falam, mas necessariamente se comunicam.

Em foco, indispensavelmente, o dueto entrega uma performance de corpo e alma, de modo que ali não mais são Dany e Lucas, suas vozes e corpos cedem espaço para Márcia e Demétrio, por vezes, fosse por um blackout que se tornou fadeout, pela urgência de estar na marca no tempo certo ou alguma correria no backstage — a qual os olhos e ouvidos mais atentos perceberam — viu-se breves relances de Dany e Lucas. Sincronia e simetria, contudo, foram as palavras de ordem, já que cada mão, pé, olho e boca estavam sincronizados, diametralmente opostos e intencionalmente coesos com a proposta.

O espetáculo, portanto, é belo, mas não é confortável; é necessário ao passo que muitos talvez se neguem a reconhecer sua urgência; ele é preciso. Essa dicotomia é explicada ao longo do espetáculo, de modo que as múltiplas faces das personagens vão se desenrolando.

“A Número Um” é, antes de qualquer fato, como tantas e tantas outras milhões de obras, uma história de amor, e a posteriori é uma tragédia, como uma boa história cujo elemento coesivo é o amor. Declaração um tanto polêmica do ser que lhes escreve este texto? Um pouco, mas lhes explico: o amor, se consideramos este como uma ficção verdadeira, será indispensavelmente uma tragédia, e já possui seu fim traçado — seja ele o fim do algo/alguém amado ou a desconstrução das percepções que levaram à construção dessa ficção, ou seja, irremediavelmente trágico.

Entre Márcia e Demétrio, entretanto, a tragédia se dá pelas duas possibilidades. O enredo da obra busca, dessa maneira, trazer à luz a temática urgente, mas desconfortável, de um relacionamento abusivo entre as personagens. Na dramaturgia, Demétrio ocupa a figura do ser moralmente antagônico, enquanto Márcia está no papel da vítima das ambições e loucuras de Demétrio; porém, apesar de possíveis discordâncias, nada muda a percepção de que a peça é sobre ele.

O protagonista é marcado como a típica caricatura do indivíduo narcisista e manipulador, de modo que este, em sua percepção do mundo e de si, observa-se como o número um e os demais deveriam e estariam a serviço de suas vontades. Márcia seria, dessa maneira, apenas um instrumento para a satisfação e alimentação do ego de Demétrio, o qual foi ferido por outra mulher no início da teatralidade. Metaforicamente, um está no espaço do patriarcal, marcado pela cultura do sujeito conquistador, manipulador e ardiloso; o outro está no histórico espaço do feminino humilhado, massacrado e manipulado.

Para conseguir o que lhe interessa, o vil personagem faz o que todo bom narcisista sabe fazer de melhor: torna-se o centro do universo e da atenção do outro, por meio da criação ficcional de uma relação única, pelo chamado “bombardeio de atenção/de afeto/de amor”. Após alcançar o objetivo, inicia-se a desconstrução da ficção criada. Assim acontece entre Márcia e Demétrio. Ela é encantada, um relacionamento inigualável a qualquer outro é criado e, posteriormente, como um brinquedo que vai perdendo o encanto aos poucos para uma criança, Márcia é lentamente destruída, isolada, humilhada e abandonada.

De cenas que variam entre o abuso verbal ao estupro, a teatralidade choca a plateia com a realidade de tantas e tantas Márcias que viveram ou ainda vivem com um Demétrio, demonstrando uma paleta de condições sociopsicológicas presentes em um relacionamento abusivo e o que mantém sua existência. Vê-se que a personagem, após as construções das mentiras, está presa ao vil protagonista por uma série de questões psíquicas, sociais e econômicas. Após determinado momento, não é mais da vontade dela estar no relacionamento que a destrói, mas da necessidade de um lar, de alimentos ou da necessidade emocional daquele que antes era o “centro de seu universo”.

Mesmo quando fisicamente distante, correntes invisíveis relacionadas à sua saúde mental desestabilizada prendiam Márcia a Demétrio. Por fim, como já dito: tragédia, nos sentidos amplo, restrito e popularmente conhecidos; o protagonista julgado por outro homem, absolvido de seus crimes, livre e satisfeito; e o raiar de um novo dia, com a possibilidade de uma nova vítima-Márcia.

Dado o exposto, a teatralidade é, como já dito anteriormente, dicotômica devido à sua urgência e ao incômodo que provoca — incômodo este que não se configura como ruim —, mas, enquanto incomodar, que se faça presente, entendendo que significa a necessidade e a possibilidade de mudança. Além disso, marca um ponto de virada nas propostas do coletivo, ao apresentar a tecnicidade presente no elenco e na configuração da montagem. Também entra para o acervo da verdadeira cena pernambucana de teatro, marcada pela criticidade e pelo sensível olhar às cóleras e chagas das realidades vigentes.

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