Ø mål: festejo em Cólera – Crítica de Dinamarca

por Vendo Teatro
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Foto: Bruna Valença, Danilo Galvão

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2024

Para contar a história de Hamlet, o clássico shakespeariano, o grupo Magiluth dobra o texto como quem faz origamis. Aqui o título é Dinamarca, e o tom preservado é a lembrança do enredo principal da peça: um príncipe busca vingar o assassinato de seu pai, o rei, pelo irmão deste, que agora é rei e se casou com a mãe; entre as reviravoltas, a relação que havia entre o príncipe e uma garota é interrompida e tudo ali é permeado por insanidade, politicagem, violência e, naturalmente, morte.

Bem, Hamlet é um clássico conhecido, montado para múltiplas mídias e se tornou um marco na história mundial do teatro. Explorado e já virado ao avesso, mas que por sua totêmica angústia humana, pelo seu lugar cravado no panteão da literatura e também pela sua investigação dos dissabores ouroboricos da humanidade, Hamlet segue atual e relevante. O que faz de Dinamarca especial e único como espetáculo está justamente nas possibilidades de dobraduras que o Magiluth ousa fazer com esse texto. Então, deixemos Hamlet de lado, e olhemos o Dinamarca do Magiluth a partir da dobradura, do amassado, da inserção que intersecciona, da despressurização sem máscaras de oxigênio e, principalmente, da violência.

Numa formatação de arena, o público é recebido com taças, champanhe e música; e aos rompantes somos introduzidos ao universo de Dinamarca: muita bebida — Lucas Torres bebe mais de um litro de cerveja de uma vez só num trecho curto mas quase circense de tão revelador e acrobático —, muito sangue — começa discreto, no dedo anelar de Mário Sérgio Cabral, e nos dentes de todos, e depois na camisa, e logo transborda de um teixo por cima das taças num momento de silêncio agitado —, muita violência — de múltiplas maneiras a violência aqui é a veia por onde o sangue de Dinamarca corre; Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera protagonizam o momento mais violento do espetáculo, enquanto Erivaldo narra o que de soslaio pode ser impresso como o último encontro entre o príncipe e a menina das fitas, Parmera emudece, e a cena é inundada “sem resistência […] sob a onda e o abraço do dilúvio, ficou deitada”, também é espinhoso, sombrio e angustiante (e ensurdecedoramente violento) o trecho em que Giordano de Castro narra o ínfimo trapo que somos enquanto espécie, e todas as mudanças que ocorreriam no planeta caso viéssemos a morrer todos — e muito humor — mordaz cruel, sarcástico, irônico, satírico, cortante e áspero; o festejo da corte dinamarquesa ali, no castelo, na festa, na ebriedade violenta, no escopo inumano de um sistema monárquico e hipervalorização daquela branquitude heterocisnormativa, a bondade daquelas pessoas imundas é hilária: eles pensam muito de si sendo eles muito pouco do que é ser gente —.

Dinamarca é também visualmente sinestésico, são artefatos que brilham pela simplicidade mas que, no conjunto da obra, explodem texturas e funcionalidade cênica. O uso do flash de uma câmera analógica é um contador de histórias por si só; a mesa dessa festa, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, é jogo cênico fino e eficaz, e também é som e fúria quando as bandejas são derrubadas, batidas ou mesmo apenas reorganizadas. Dinamarca é caos ornamentado.

Explosiva, contundente e bunda-canástrica, a Dinamarca do Magiluth quer usar Hamlet para adentrar noutros portões, para falar sobre temas que, apesar de flanarem os ares do texto de Shakespeare, permeiam as vibrações do grupo, do viés político-artístico que eles querem mostrar. Aqui não há um final cálido e reservado como o “boa noite, doce príncipe, e coros de anjos te conduzam ao teu repouso”, não é um aceno ao heróico anti-heroísmo; há algo de podre no reino da Dinamarca, e o Magiluth nos empurra aos seus leões neste espetáculo mal, festivo e colérico.

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