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  • Complacência Vil | Crítica de Cúmplices – Transgressões de um Ricardo III

    Complacência Vil | Crítica de Cúmplices – Transgressões de um Ricardo III

    Foto: Divulgação

    É necessário a um príncipe, para ser manter, que aprenda a ser mau (…) É muito mais seguro ser temido que amado.

    Integrante do 31º Janeiro de Grandes Espetáculos, Cúmplices – Transgressões de um Ricardo III é um manifesto poético-político. O espetáculo, fruto da colaboração entre Malazartes, Paulo de Castro Produções e PIANE, é uma lição sobre como o teatro pode ser uma ferramenta de questionamento e resistência. 

    O mundo transita pela selva da história e da ficção, palco aqui é espelho de uma trama tão ancestral quanto contemporânea: a lida com poder. A peça, uma reinterpretação do clássico Ricardo III de Shakespeare, não apenas revisita o texto original, mas também o apunhala, revelando fissuras que tornam sua estrutura ainda mais angustiante e contundente. A obra se estrutura como uma metateatralidade viva, onde atores são personagens e intérpretes do próprio ato de interpretar, fingir talvez. Nesse jogo a linhas entre realidade e ficção se embaralha, e o público é convidado a mergulhar, adentra e até ficar debaixo da mesa escondido mas atento, nas profundezas das contradições e subtextos do reino.

    Em cena, o duelo entre Fabiana Pirro e João Guisande, com a co-direção deste último, é de uma intensidade amiga e hostil. Ambos os atores sabem que estão ali para mais do que encarnar personagens; estão, na verdade, criando um jogo dentro do jogo, uma dança que dobra as convenções do teatro tradicional. Pirro, com sua entrega feroz, revela a instabilidade da alma humana, um reflexo das fraquezas que Shakespeare tão bem explorou em seu texto mas também a atriz aqui é mordaz, brilha incessantemente quando sua bufona entra em cena. Por outro lado, Guisande, com seu olhar cortante e preciso, personifica a astúcia e a manipulação. Ele co-dirige a peça como maestriz e tranquilidade, e assim orquestra a tensão crescente entre os atores e o público. O teatro torna-se uma arena onde o poder é simultaneamente contestado e conquistado, e a cumplicidade entre os atores e o público se torna um reflexo da cumplicidade dos próprios personagens com os seus próprios demônios.

    Ao adaptar a peça de Shakespeare, Cúmplices não se contenta em simplesmente atualizar o contexto histórico. Ela revela a universalidade das palavras, e denuncia as artimanhas que o poder utiliza para se perpetuar e manipular. A história de Ricardo III, que no século XVI retratava um rei tirano, encontra ecos perturbadores na atualidade, onde radicalismos absurdos e autoritarismos ainda tentam se impor. A peça funciona como um alerta sobre os riscos de se aliar a discursos de ódio e manipulação, uma reflexão crítica sobre o que significa, de fato, ser cúmplice na construção do poder. O espetáculo se torna uma análise da própria natureza da representação, onde no palco não apenas se transmite um drama, uma tragédia, mas uma catastrofe espelhada em nós mesmos.

    “Meu reino por um cavalo!”, clama Ricardo, desesperado, numa das cenas mais icônicas do teatro universal. Este grito de desespero ressoa de forma perturbadora no contexto da adaptação, onde o desejo insaciável pelo poder se expõe na fragilidade de um homem que se perde nas artimanhas do próprio jogo. Cúmplices não apenas revisita a angústia de Ricardo, mas se alimenta dela, multiplicando-a pelas cadeiras do teatro através do vinho que bebemos enojados. A peça torna-se um reflexo da própria teia de arapucas, de como o poder se sustenta no jogo de sombras e na cumplicidade com o absurdo – uma reflexão inevitável sobre os tempos que vivemos. A metateatralidade se impõe ao evidenciar o processo de construção da peça, no qual os atores, imersos em seus papéis, estão ao mesmo tempo distantes e próximos de seus personagens.

    A luz aqui, com a assinatura precisa de Luciana Raposo, se torna uma protagonista em si, conduzindo a dramaturgia para territórios quase oníricos; e vai além lançando, de quando em quando, o foco na cumplicidade forçosa e passiva da plateia. Não só ilumina o espaço físico, mas também joga com as sombras interiores dos personagens, criando um contraste essencial entre o visível e o oculto, entre o poder declarado e o que se esconde nas entrelinhas da trama. É a amplificação da angústia existencial de Ricardo, onde a busca pelo trono é também uma busca pela autoilusão. A luz se torna a metáfora da revelação e do ocaso, sempre à beira da extinção, como os próprios sonhos de poder do protagonista.

    O final de Ricardo III não é apenas o fim de um rei, mas o abalo profundo de uma estrutura que se alimenta de dor. Em Cúmplices, a morte de Ricardo não encerra o ciclo – ela o destrói, dilacerando a ilusão de que a opressão possa ter um fim definitivo. O trono vazio não é apenas um espaço desocupado; ele é um vórtex que suga toda a moralidade, toda a humanidade, que restava na cena. Mas o palco não esvazia – ele se põe abismo, uma condenação silenciosa, onde os artistas, como espectros, permanecem, ainda em movimento, com os rostos desfigurados pela própria complicidade. O público, então, não se vê como um observador distante, mas como parte de um sistema que nunca se desintegra – ele é cúmplice, e as mãos que aplaudem podem estar tão sujas quanto as que executaram a cena. Não há redenção aqui, não há um fecho confortável. O espetáculo não é apenas uma adaptação – é um veneno, uma verdade imortal que não se encerra, mas se espalha nos dentes e nos dias seguintes. O jogo entre o verdadeiro e o falso é apagado, e o espelho não reflete mais o teatro, mas a vida que, como o poder, é uma teia de manipulação e transgressão, sem fim. E nós, cúmplices inertes e trôpegos.

  • Ø mål: festejo em Cólera – Crítica de Dinamarca

    Ø mål: festejo em Cólera – Crítica de Dinamarca

    Foto: Bruna Valença, Danilo Galvão

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2024

    Para contar a história de Hamlet, o clássico shakespeariano, o grupo Magiluth dobra o texto como quem faz origamis. Aqui o título é Dinamarca, e o tom preservado é a lembrança do enredo principal da peça: um príncipe busca vingar o assassinato de seu pai, o rei, pelo irmão deste, que agora é rei e se casou com a mãe; entre as reviravoltas, a relação que havia entre o príncipe e uma garota é interrompida e tudo ali é permeado por insanidade, politicagem, violência e, naturalmente, morte.

    Bem, Hamlet é um clássico conhecido, montado para múltiplas mídias e se tornou um marco na história mundial do teatro. Explorado e já virado ao avesso, mas que por sua totêmica angústia humana, pelo seu lugar cravado no panteão da literatura e também pela sua investigação dos dissabores ouroboricos da humanidade, Hamlet segue atual e relevante. O que faz de Dinamarca especial e único como espetáculo está justamente nas possibilidades de dobraduras que o Magiluth ousa fazer com esse texto. Então, deixemos Hamlet de lado, e olhemos o Dinamarca do Magiluth a partir da dobradura, do amassado, da inserção que intersecciona, da despressurização sem máscaras de oxigênio e, principalmente, da violência.

    Numa formatação de arena, o público é recebido com taças, champanhe e música; e aos rompantes somos introduzidos ao universo de Dinamarca: muita bebida — Lucas Torres bebe mais de um litro de cerveja de uma vez só num trecho curto mas quase circense de tão revelador e acrobático —, muito sangue — começa discreto, no dedo anelar de Mário Sérgio Cabral, e nos dentes de todos, e depois na camisa, e logo transborda de um teixo por cima das taças num momento de silêncio agitado —, muita violência — de múltiplas maneiras a violência aqui é a veia por onde o sangue de Dinamarca corre; Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera protagonizam o momento mais violento do espetáculo, enquanto Erivaldo narra o que de soslaio pode ser impresso como o último encontro entre o príncipe e a menina das fitas, Parmera emudece, e a cena é inundada “sem resistência […] sob a onda e o abraço do dilúvio, ficou deitada”, também é espinhoso, sombrio e angustiante (e ensurdecedoramente violento) o trecho em que Giordano de Castro narra o ínfimo trapo que somos enquanto espécie, e todas as mudanças que ocorreriam no planeta caso viéssemos a morrer todos — e muito humor — mordaz cruel, sarcástico, irônico, satírico, cortante e áspero; o festejo da corte dinamarquesa ali, no castelo, na festa, na ebriedade violenta, no escopo inumano de um sistema monárquico e hipervalorização daquela branquitude heterocisnormativa, a bondade daquelas pessoas imundas é hilária: eles pensam muito de si sendo eles muito pouco do que é ser gente —.

    Dinamarca é também visualmente sinestésico, são artefatos que brilham pela simplicidade mas que, no conjunto da obra, explodem texturas e funcionalidade cênica. O uso do flash de uma câmera analógica é um contador de histórias por si só; a mesa dessa festa, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, posta e reposta, é jogo cênico fino e eficaz, e também é som e fúria quando as bandejas são derrubadas, batidas ou mesmo apenas reorganizadas. Dinamarca é caos ornamentado.

    Explosiva, contundente e bunda-canástrica, a Dinamarca do Magiluth quer usar Hamlet para adentrar noutros portões, para falar sobre temas que, apesar de flanarem os ares do texto de Shakespeare, permeiam as vibrações do grupo, do viés político-artístico que eles querem mostrar. Aqui não há um final cálido e reservado como o “boa noite, doce príncipe, e coros de anjos te conduzam ao teu repouso”, não é um aceno ao heróico anti-heroísmo; há algo de podre no reino da Dinamarca, e o Magiluth nos empurra aos seus leões neste espetáculo mal, festivo e colérico.