Ainda Somos Os Mesmos E Vivemos Como Nossa Mãe | Crítica de “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe”

por Vendo Teatro
33 visualizações

Foto: Nil Canine

Sem qualquer expectativa. Eu já conhecia o trabalho das atrizes, e minha curiosidade estava em como elas contariam a história. Um samba toca, o merchandising da Caixa Cultural dispara, a luz se apaga; o público silencia, e a obra começa de uma janela de luz: “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” é um espetáculo em que as atrizes Guida Vianna e Silvia Buarque interpretam mães e filhas que decidem embarcar em uma viagem para (re)contar suas histórias, para “quebrar a imensa parede” que não permite que elas se (re)aproximem. A história caminha, então, para levar o público, a partir da engenhosidade do diálogo e do desnudamento de tudo que estava contido até aquele momento nas personagens, a uma reflexão sobre as relações humanas e os processos que são consequência dos encontros e do próprio fato de nos relacionarmos.

A peça parte da mãe para falar de traumas, outras heranças, silenciamentos, incompreensões e consequências dos relacionamentos maternos que refletem em muitas formas de relações que nós estabelecemos com os outros (uma ideia freudiana!), atravessa tempos e experiências diversas, é uma história do mundo todo, é uma história de pessoa, ao mesmo tempo em que explora temas como homofobia, lutas feministas e a construção de um novo espaço para a mulher na sociedade. O espetáculo aborda os processos de violência e cura que permeiam essas relações e o nosso subconsciente.
A sonoplastia integra muito bem a história, é sensível e coerente. No entanto, a técnica foi prejudicada pela má microfonação da atriz Silvia Buarque, que, em determinados momentos, teve sua voz não captada ou abafada por movimentos de cena que distanciaram o microfone de sua projeção vocal.

O cenário é notavelmente bonito e bem concebido. Destaco o paredão espelhado em bronze, que me remete a um tacho, uma taça; acolhedor o suficiente, como uma mãe, para que a plateia se sentisse parte do palco, se colocasse melhor em cena, encarasse, pelas personagens, sua própria história. As janelas, portas e molduras flutuantes auxiliam na imersão no universo da peça, elevando o público ao estado da ficção; essa flutuação que sentimos quando estamos diante de uma narrativa envolvente , além de serem um esmero de delicadeza.

As marcas de iluminação são uma primazia para aqueles que, além da emoção, apreciam as técnicas teatrais. As luzes, bem executadas, (re)criam um ambiente elegante, com fantasia e uma paleta de cores muito sofisticada, além de serem fundamentais para contar a história e construir os recortes temporais que a narrativa propõe.

As atrizes transmitem a narrativa com maestria. Trazem ao palco a beleza dos conhecimentos adquiridos com seus anos de experiência e de carreira na técnica da atuação. Isto é nítido em seu processo de apresentar e desenvolver as personagens. Contudo, em certos momentos, especialmente no início, a dicção de Silvia, combinada com a falta de projeção e a má microfonação, gerou ruídos que levantaram questionamentos sobre a proposta da cena. Mas a atriz contornou a situação com maestria, defendendo seu texto com uma beleza peculiar, mostrando que, assim como na vida, o teatro é uma dança de quedas e soerguimentos, permitindo que a fragilidade se torne um ponto de reflexão sobre a obra e sobre a própria arte.

Assistindo ao espetáculo, tive a sensação de que aquele chão coberto de folhas secas, o público refletido no fundo da cena, as janelas, quadros e esquadrilhas flutuando no ar abriam uma fenda numa bolha coletiva onde a humanidade guarda suas histórias e os nossos jeitos de existir. Ter, e talvez ser, mãe deve estar em contato direto com nossos afetos instintivos de sobrevivência, e nós espiávamos o desenrolar desta narrativa que circunda tanto nossa existência: mãe é um lugar difícil de encarar numa mesa de restaurante. E não há como fugir, já cantava Belchior e as atrizes deste espetáculo.

Inscreva-se
Notificar se...
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments