Z. Bauman e as sereias do Agridoce | Crítica de “Mar Fechado”

por Vendo Teatro
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Lucas Bebiano
Recife, Agosto de 2019
Foto: Jezz Maia

Z. Bauman e as sereias do Agridoce

Bauman não viveu no Recife, se tivesse vivido ele teria compreendido que essa história de relacionamento líquido é coisa de gente sem sabor. Gente que é agridoce vive tudo ao mesmo tempo, o líquido, o sólido, o salgado – já nasce dentro da água que nem peixe entendendo que ao mesmo tempo que o mar é calmo ele também é muito agitado. E é assim que é a vida, certo? Acho que todos compreendem isso de alguma forma, mas a maneira com que as sereias do teatro Agridoce compreendem tem o sabor que só elas conhecem o ponto.

 As ondas do mar podem ninar você da mesma forma que uma mãe nina uma criança, não que alguém tenha sido fisicamente carregado até os assentos do Teatro Hermilo Borba Filho nesse domingo (25), mas todos entraram carregados de uma intenção de afeto que tinha um formato de pétala de rosa branca. E é sobre isso, sobre você poder cozinhar o seu alimento da maneira como você desejou e poder servir ao público convidado da maneira que você quiser, e a maneira escolhida aqui é a maneira das águas. Mar Fechado é um espetáculo embrulhado pela equipe e dado de presente para quem assiste.

Para mim todo o espetáculo se resume em uma fala: “Quando eu era criança eu ficava imaginando o que tinha debaixo do oceano”, e a partir dela nos deparamos com uma série de buscas e descobertas do que tem nessa imensidão infinita que é o mar, a metáfora se concretiza quando se percebe que essa água toda não é só a do oceano, mais também são as águas mais internas que percorrem o nosso corpo. E é aí que entra Sophia William e Nilo Pedrosa que dividem o palco no decorrer de todo o espetáculo, fazendo de seus corpos um elo entre o público e a dramaturgia de Estevão Caminha.

Afinal, o que tem debaixo do oceano? Em cena os atores trazem a imagem de duas pessoas adultas que, tomadas de consciência, conseguem perceber com que frequência as ondas do mar estão batendo em suas vidas. E essa consciência vem – esse mar fechado se abre – com as marcas de uma negritude, dentro das religiões de matrizes africanas, ou de uma branquitude, dentro de uma sexualidade não normativa. O texto mostra que são tantas as reflexões que chega uma hora que o excesso de consciência assusta “Parece até um jogo de quem sofre mais”.

Assusta tanto que eu acho que eu prefiro Bauman, ele não é recifense mas é europeu. Acho que eu considero tudo líquido mesmo, sem essa de querer estudar as formas da água, eu prefiro amassar a pétala branca ganha, sentar na poltrona do teatro de qualquer jeito, pegar meu celular e tirar várias fotos do espetáculo porque eu sei que um filtro deixa tudo mais bonito, prefiro voltar pra casa sozinho de Uber, sentar na frente do laptop e escrever uma crítica sem reflexões profundas usando um conceito clichê que todo mundo acha que conhece porque já viu um vídeo no Youtube falando sobre, de uma forma bem líquida.

SERIA A ARTE O CONTRAPONTO DA SUPERFICIALIDADE SOCIAL?

Uma peça de teatro dá margem a tantas possibilidades, inclusive fornece a chance de entender as coisas de outra maneira; uma respiração simultânea, um olhar sincero, um amarrar de tranças. São com essas sutilezas que o espetáculo fala pra gente que o nosso corpo também é dramaturgia, um tipo de dramaturgia que vem de toda a porcentagem de água que tem dentro de nós, é possível chamar essa água de subjetividade(s). As sereias do Agridoce parecem estar imersas nessa temática, e com esse trabalho nenhuma água vai escorrer em margem, elas vão transpassar em tempestade.

Saí do espetáculo tão reflexivo quanto um filósofo polonês, essa sensação deu abertura para um olhar mais apurado de quem eu sou, talvez eu precise ter o meu mar mais fechado, o que me conforta foi ter entendido que a qualquer momento eu posso abri-lo.

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