Única Revolução Universal | Crítica “Pro(fé)ta — O Bispo do Povo”

por Vendo Teatro
0 comentário

Foto: Márcio Antônio

Por Matheus Campos.
Recife, dezembro de 2019.

Única Revolução Universal

“O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.

Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;

Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;

Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

— 1Coríntios 13:4-7

O apóstolo Paulo — figura presente na religião cristã —, por volta do ano 50 D.C. escreveu à igreja em Corinto, Grécia, com o intuito de sanar conflitos que estavam ocorrendo dentro da igreja, conflitos esses — não surpreendentemente —, de intolerância, segregação e distorções das mensagens e metáforas presentes no livro cristão. Assim, o apóstolo escreve duas cartas, à igreja, que mais tarde seriam conhecidas como 1 e 2 Coríntios e adicionadas ao livro cristão, a bíblia. 

Além disso, vale salientar, que essas cartas contêm em seu cerne a tentativa de explicar qual é a verdadeira natureza do que é a religião e o divino. Dessa forma, tornando-se umas das partes mais poéticas e metafóricas da bíblia, em especial 1 Coríntios, pois enfatiza a natureza do amor e dons concedidos pelo divino. 

E, talvez, seja neste instante, no instante que Paulo fala do amor, que ele quebra todos os muros criados entre religiões e alcança a quase plenitude de uma figura universal, alcança uma ideia de uma entidade metafísica universal.

Entretanto, para se compreender essa ideia quase universal, é interessante que se explique e aprenda o significado de religião. A palavra religião vem do substantivo latino religîo que significa, religião, e por sua vez, segundo o dicionário, religião é ato de crer em algo superior e realizar ações/rituais em nome desse algo superior. Mas, há uma origem por trás do substantivo religîo, de acordo com uma vertente, a palavra latina vem do verbo em latim religare que conforme estudos poderia significar: reconectar/reconciliar/reaproximação/apertar laços; já de acordo com outra vertente, vem do verbo relegere que também segundo estudos poderia significar: reler/retomar/revisitar/resgatar algo que fora deixado.

Ou seja, o ato religioso, a religião, — independente de suas origens e características — é uma tentativa de reconectar com e/ou resgatar algo que fora deixado entre o humano e divino. E, quando se analisa o que o apóstolo escreve sobre o amor, percebe-se que aquela visão de um sentimento tão puro, simples e comum é a visão que ultrapassa até mesmo a concepção de divino, pois alcança aqueles que não acreditam na existência de uma divindade. Dessa maneira, surge através de tais palavras uma concepção metafísica — algo que não vemos, tocamos ou ouvimos, presente no mundo das ideias —, que alega, que qualquer mulher ou homem que já passou e passará pela terra e linhas da história  sentiu/sentirá e tentou/tentará gerar uma conexão ou laço com esse sentimento que, assim como a ideia de Deus/deus/deuses, não possui uma verdade absoluta sobre como surgiu, de onde vem e para onde vai. 

Sentimento que, assim como a ideia de Deus/deus/deuses, provoca arrepios em quem sente a presença; realiza atos e rituais em seu nome e para se aproximar dele; sentimento que ganha o status, sob uma visão bastante romântica, de onipresente, onibenevolente e quem sabe até onipotente, capaz de realizar revoluções.

E, ao partir de tal mote sobre a universalidade do amor, encontra-se a teatralidade “Pro(fé)ta — O Bispo do Povo” do coletivo Grão Comum, possuindo como elenco Júnior Aguiar, Daniel Barros, Márcio Fecher e a dupla musical Los Negrones Felipe Silva e Fábio Silva —. A teatralidade é a terceira parte de uma trilogia, conhecida como “Trilogia Vermelha — tríade de espetáculos biográficos” e fala sobre fatos na vida do arcebispo Dom Hélder Câmara contra atos ditatoriais no Brasil, a criação dos movimentos de reformas na igreja e a luta pelos direitos humanos. 

A peça também traz reflexões sobre as diferentes circunstâncias, constantemente presentes, nas diferentes classes da sociedade e há ali um clamor latente por uma palavra: amor.

O enredo transita entre fatos do passado e do hodierno, ao carregar uma característica anacrônica — que não segue o curso comum/linearidade dos fatos — e gera assim um jogo lúdico com a plateia, que migra entre reflexões-monólogos, músicas, danças, uma interação direta com a plateia e atos com representações teatrais. A teatralidade começa com o sepultamento do padre Henrique em 1969, recordando os assassinatos e crueldades… corpos trucidados e gerados pela ditadura militar de 1964. 

Durante a narrativa há confrontos de realidades; visões de mundo que se descortinam e se denunciam; a face da violência que afligiu a população naqueles anos e também hoje em dia. Há críticas diretas aos atos de censura artística no país e clamores pela consciência de palavras como “liberdade, igualdade e fraternidade”. 

Durante toda a peça, seja durante os sermões dados ou diálogos reflexivos ou músicas cantadas, tocadas e dançadas, há ali um inerente desejo de viver e ser feliz, uma pulsante vontade pela liberdade de amar e sentir-se amado pela vida-terra-semelhantes-realidade. Há ali uma contagiante força e apego pelo simples que é viver, ainda que existam problemas. 

A performance teatral toca pessoas da plateia em diferentes momentos e de diferentes formas. Risos, choros e beijos são manifestados ao decorrer do enredo.

E, em diversos momentos, o peso da verdade mordaz do hodierno pesa sobre todos, a peça traz consigo uma reflexão sobre os direitos humanos que são constantemente ignorados e revela semelhanças entre a época da ditadura militar e a atualidade. As garras de uma sociedade embebida em ódio são reveladas para aqueles que ainda não conseguiam enxergar. 

Na última cena, com o clima um tanto quanto pesado, atores e plateia se misturam, uma roda se forma e uma ciranda se dança. Ali, naquele instante, repleto de estranhos de mãos dadas, esquecendo os pesos do mundo e da cena anterior da teatralidade, havia quem sabe, um verdadeiro ato de amor. Um verdadeiro ato revolucionário, que independente de raça, crenças e medos, pessoas se deram as mãos, abriram um sorriso sem malícia e dançaram e cantaram numa só voz, fizeram arte juntos, despretensiosamente, por alguns instantes, sentiram a vida em sua plenitude de simplicidade, liberdade, igualdade e fraternidade. Plenitude revolucionária e universal de amor, que converge com os versos:

“Em época

De crise

O amor

É o único 

Ato

Revolucionário”

— Fábio Rafael

0 comentário
Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Related Posts