Um Toque de Fantasia Na Realidade | Crítica “Fantasia”

por Vendo Teatro
1 comentário

Foto: Douglas Santos e Rodrigo Ribeiro.

Por Matheus Campos.

Recife, janeiro de 2020.

Um Toque de Fantasia Na Realidade

“E enfrentar o dia-a-dia

Reaprender a sonhar

Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim

Continua sempre que você responde sim à sua imaginação

A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não”

— Maria Bethânia

De acordo com o trecho retirado da música “Brincar de Viver”, da Maria Bethânia, o ato de viver é um constante processo de renovação. Entretanto, não é somente um processo de renovação, mas de resiliência; resiliência em sonhar, resiliência em sempre querer mais, resiliência em apenas querer continuar a vida, apesar das muitas adversidades.

Consoante a tal ideia, presente na música da Maria Bethânia, encontra-se o musical “Fantasia”, do Grupo Confluir, que através de músicas, do Chico Buarque, conta a história de uma artista que, já de idade avançada, revive momentos cruciais de sua trajetória. Sua vida é marcada por dois sonhos: ser uma grande artista e viver um grande amor, mas ambos foram frustrados.

O espetáculo musical, comumente marcado pela música desde o início até o final, quebra um pouco o convencional quando representado pelo Grupo Confluir em sua performance “Fantasia”, pois a narrativa do show se inicia no mais absoluto silêncio. O silêncio pelo teatro é ensurdecedor ao ponto de se ouvir os ouvidos zunirem e o foco ser exclusivo para a atriz no palco.

Após aqueles instantes de silêncio, a narrativa se desenvolve e o fator musical também entra em cena, cumprindo e revelando a razão para o nome do musical se chamar “Fantasia”, pois se trata de um sonho/uma nostalgia/uma fantasia da personagem principal sobre seus anos de juventude. Entretanto, as camadas de significado, sobre o título, não se limitam a isso, mas há uma música de Chico Buarque chamada “Fantasia” que fala sobre fantasiar e esquecer os males da realidade e é também cantada no musical.

“E se, de repente

A gente não sentisse

A dor que a gente finge

E sente

Se, de repente

A gente distraísse

O ferro do suplício

Ao som de uma canção

Então, eu te convidaria

Pra uma fantasia

Do meu violão”

O espetáculo é agradável não só aos ouvidos, o visual escolhido para a apresentação agrada e atende a proposta do momento artístico. A começar pelos figurinos (Renata Regina) que variam entre tons pastéis no início da teatralidade a cores mais intensas manifestadas com o decorrer da encenação. Além disso, embora os figurinos retratem um tom de passado com suas boinas, suspensórios, chapéus e outros itens, os tecidos e a configuração de combinações dão um toque de contemporaneidade e universo lúdico.

Outro elemento importantíssimo para a composição do elemento visual da peça é a iluminação (Natalie Revorêdo) que não deixa desejar e cumpre seu papel devidamente. Há harmonia entre coreografia (Aldeline Silva), figurinos e iluminação. E a partir dessa harmonia até as sombras ganham um papel crucial no processo artístico… as sombras dançam e possuem sua própria narrativa.

Além disso, as escolhas das músicas e as coreografias denotam coesão e permitem que o espaço cênico consiga manter sua continuidade. Muito embora o elemento dramático, o papel da atuação, que é fundamental para o desenvolver do drama, — principalmente porque não há atos de conversação entre os personagens — tenha deixado um tanto quanto a desejar.

Todo o palco/cenário (Aldeline Silva, Bruna Guerra e Ozilma Menezes) é espaço lúdico que se desmonta e remonta bem diante da plateia. Há um “je ne sais quoi”, na harmonia da configuração dos espaços e há esse “não sei o que” também na configuração e disposição das belíssimas vozes — em especial os baixos e as contraltos —, que ressignificam as músicas de Chico Buarque e as tornam mais “visuais aos ouvidos”.

Ademais, como elemento principal, a imagem que o drama traz, gera reações e reverberações pela plateia. Não se trata só da história de uma mulher, mas de uma mulher com sonhos frustrados por viver numa sociedade tóxica, patriarcalista e misógina.

E com esse elemento, como fator chave para o enredo, o espetáculo ganha uma posição de atemporal, pois as chagas do patriarcado não só repercutiam no passado e até ganharam faces pelas músicas de Chico Buarque, mas repercutem no presente. E assim, esses males patriarcais-arcaicos que resistem às lutas e ao tempo, ocupam a posição de principal motivo para a censura, frustração e morte do grande potencial feminino.

“Num suspiro aliviado

Ela se virou de lado

E tentou até sorrir

Mas logo raiou o dia

E a cidade em cantoria

Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni

Joga bosta na Geni

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni”

— Chico Buarque

Quantas Genis nós conhecemos? Quantas delas passam despercebidas? Quantas delas já frustramos? Quantas delas já magoamos? Quantas delas já julgamos?

É curioso olhar o espetáculo como um todo e comparar com o seu título “Fantasia”. Lúdico, porém paupável; fantasioso, embora com temática tão distópica, tão real. E no final, com o fechar das cortinas e a última nota “dó” dada, ele deixa um gosto de “quero mais um pouco” e um cheiro de “realidade, aqui vamos nós novamente”, porque é fácil encarar o real quando ele é fantasioso e dentro de um palco/teatro, é fácil sentir, se emocionar, arrepiar e até aplaudir; mas é profundamente difícil quando a realidade ultrapassa o estado de sensorial e alcança o status de “vivência”.

1 comentário
Subscribe
Notify of
1 Comentário
Inline Feedbacks
View all comments
Adriano Portela
4 anos atrás

Excelente crítica. Fiquei com vontade de assistir o espetáculo.

Related Posts