Um Corpo Como o Cerne da Questão | Crítica de Manifesto Transpofágico

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Paulo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022

“Meu corpo é uma prisão
Que me impede de dançar com aquele que amo
Mas minha mente segura a chave
Meu corpo é uma prisão
Que me impede de dançar com aquele que amo
Mas minha mente segura a chave (…)

My body is a cage – Arcade Fire

“Quando foi que você decidiu ser Ela? Qual seu nome verdadeiro? Não, o verdadeiro mesmo, o de batismo? O que tem entre as pernas? Tem certeza de que é ela? Tem como provar?” Questionamentos como esses são mais comuns do que se imagina na vida de travestis e transexuais, que precisam lidar diariamente com à sina de viver numa sociedade cheia de preconceitos e com estigmas relacionados a esse corpo; cujo resultado disso reflete no número alarmante e preocupante de violência e morte contra essa população. 

De acordo com o relatório do Transgender Europe (TGEU), por exemplo, que acompanha dados mundiais levantados por instituições trans e LGBTQIA+, nos últimos 13 anos, pelo menos 4.042 pessoas trans e de gêneros não-binários foram assassinadas entre janeiro de 2008 e setembro de 2021. Esses crimes foram motivados pelo fato de as vítimas terem a identidade de gênero e sexualidade fora do padrão imposto por um coletivo. Cabendo ao Brasil ocupar o top 1 do país que mais mata travestis e transexuais no mundo.

Assim como muitas vezes, vida e arte se misturam, a realidade nua e crua desses corpos dissidentes foi retratada a partir de um monólogo escrito pela atriz, diretora e roteirista Renata Carvalho intitulado “Manifesto Transpofágico”, que participou da programação do Festival Trema!, no Teatro Luiz Mendonça Filho, no Recife. A frase “Hoje eu resolvi me vestir com a minha própria pele. O meu corpo travesti” é uma das primeiras coisas ditas pela atriz em cena, que se propõe a usar o seu próprio corpo para contar as suas vivências enquanto uma travesti e de suas antecessoras.

A sua corporeidade acaba sendo o cerne da questão, afinal, a estrutura física parece ser mais importante que qualquer outra coisa, quando estamos nos referindo a forma como se enxerga essa população. Corpo-objeto. Corpo marginalizado. Corpo questionado. Renata aparece em cena apenas vestida com uma calcinha e todo o resto descoberto – em um dado momento ela até pergunta se é necessário para fazer aquele espetáculo, ficar totalmente nua, mas a plateia, a partir de uma votação, julga que não. A iluminação, inicialmente, cobre o seu rosto, porque para contar aquelas histórias parece não ser necessário conhecer a sua face. 

Em cena, a atriz utiliza-se do teatro documental para ir recortando momentos da sua vida e levantando discussões acerca da identidade de gênero, a partir de fotos, vídeos e memórias. O monólogo suscita várias reflexões, uma delas, acerca da forma como desde cedo vamos construindo essa necessidade de definição dos papéis atribuídos para aquele bebê na barriga da mãe. “É menino ou menina? Se for ele tem que usar azul, se for ela, rosa”. Renata vai mostrando, a partir da sua fala e com um auxílio do datashow, como esses estereótipos de gênero vão sendo perpetuados e criando esse padrão biologizante. No palco, centralizado, um letreiro escrito “TRAVESTI” cumpre um papel importante para tornar o monólogo didático. O elemento cênico vai mudando de cor e interagindo de forma ilustrativa conforme a atriz vai narrando os acontecimentos.

Nos vídeos que vão surgindo no telão também é apresentado o universo marginalizado das travestis e transexuais; relacionados ao fetiche, prostituição e doenças. O uso da hormonioterapia, terapia hormonal para fins como masculinização e feminilização, é retratado no manifesto, escancarando a realidade desses corpos que muitas vezes precisavam recorrer a métodos ilegais e perigosos para alinhar as características sexuais com sua identidade de gênero. Inclusive, a própria atriz passou por esse tipo de procedimento para ter traços considerados mais femininos. 

As violências cometidas contra esses corpos e a perseguição político-social se torna uma das partes mais dura de assistir. Em um pouco mais de 1 hora de espetáculo a atriz interrompe aqueles conteúdos que estavam sendo exibidos no telão e desabafa “não consegui continuar depois daqui”. Neste momento, a impressão que passa é que o monólogo chegou ao fim. As luzes acendem e a atriz se direciona ao público, aproveita a ocasião para tirar dúvidas e matar a curiosidade dos espectadores sobre identidade de gênero. É aí que a segunda parte do manifesto começa; numa espécie de aula-espetáculo Renata convida ao público a desmistificar a ideia sobre aquele corpo, a partir do toque, do abraço e da empatia. 

Ao mesmo tempo que escuta sobre as diversas histórias, a atriz levanta alguns questionamentos: “Você já beijou uma travesti?; você já abraçou uma travesti? Etc”. O público, por sua vez, aproveita a deixa para ir interagindo e conhecendo sobre esse universo, que é tão distante para uns e tão próximo para outros. Na plateia, casais formados por homem cis e mulher trans relatam suas vivências; amigos de travestis contam sobre situações acometidas; parentes narram sobre a sua relação com familiares que estão no processo de transição. Entretanto, talvez dos depoimentos presenciados naquele dia, um dos que mais tenha chamado atenção foi o de uma mulher que levou uma criança para assistir ao espetáculo, alegando que precisava ensiná-la desde cedo a respeitar as diferenças. E que o Manifesto traria essa contribuição. 

De fato, esse monólogo cumpre um papel importante nesse sentido, pois ele expõe os acontecimentos e faz com que o público saia daquele teatro entendendo que não se trata apenas de um corpo. Se trata de toda uma esfera que foi construída para aceitar apenas a cisnormatividade e excluir tudo aquilo que foge do padrão. E a consequência dessa marginalização, é a falta de oportunidade, violência e os números gritantes de morte contra travestis e transexuais no Brasil e no mundo. 

Em Manifesto Transpofágico, Renata está despida não só de vestimentas, mas também de qualquer julgamento e de apontamentos, está ali, de peito aberto, para mostrar que vai muito além do seu corpo.

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Anonymous
2 anos atrás

Muito grata pelo olhar tão sensível ❤️🥰💋

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