Sobre a moral e os bons costumes | Crítica de “O Auto da Compadecida”

por Vendo Teatro
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Foto: Antônio Rodrigues

Foto: Antônio Rodrigues

Por Ananda Neres
Recife, Janeiro de 2020

Creio que o ‘Auto da Compadecida’ – como todo o meu teatro – exigiria uma montagem criadora e livre, que, como o texto, se baseasse na invenção dionisíaca e espetacular do Bumba-meu-boi, do Mamulengo, da Nau Catarineta, do Pastoril… (Ariano Suassuna)¹

            Sábado à noite. Muitas pessoas se apinhavam do lado de fora da sala teatral do Teatro Barreto Júnior na expectativa de entrar. No espaço de tempo entre a minha chegada e o início do espetáculo, fiquei observando quem eram essas pessoas que formavam a pequena multidão. Rostos desconhecidos de idades variadas. Saltou-me aos olhos a grande quantidade de idosos para essa apresentação. Fiquei surpresa com o público disposto. Explico-me. Infelizmente, no Recife, as plateias de teatro são mais ou menos as mesmas, são rostos que a gente reconhece de vista, fato que não se confirmou no sábado em questão. Essa observação me fez refletir que, apesar de falhas logísticas e do caso de censura, o festival Janeiro de Grandes Espetáculos, entre outras qualidades, é um necessário formador de público.

            Mas não só, a escolha do Cênicas Cia de Repertório por montar o famoso texto de Ariano Suassuna, eternizado na película de Guel Arraes, permite à audiência conhecê-lo também no palco. Essa novidade também pode ser responsável pelo público diverso. Por si só, o Auto da Compadecida movimenta a cidade.

            Inicia-se o espetáculo. Somos apresentados à história de João Grilo, rapaz pobre que encontra em sua esperteza o caminho para sobreviver e a arma para lutar contra os desmandes dos patrões, coronéis e cangaceiros. Faz dupla com João Grilo seu inseparável companheiro de “trapaças” e amigo leal, Chicó, rapaz de muitas histórias e pouca coragem. Juntos armam diversas embrulhadas e fazem se revelar as contradições das pessoas de bem da cidade.

            A ação se dá na cidade de Taperoá, interior da Paraíba. E como o estereótipo do interior, há as personagens características da cidade, o corno (dono da padaria), os religiosos (padre, bispo e sacristão), o excluído (frade), o sabido (João Grilo), o frouxo (Chicó) e por aí vai. O espírito popular é a alma da peça.

Aqui, é válido lembrar que o gênero auto remonta a tradição medieval católica que utilizava o teatro como ferramenta didática e moralizante, orientando de forma maniqueísta, o que é ser bom e o que é ser mau. Num sentido semelhante, o texto de Suassuna faz críticas a problemas sociais e morais, como também despe as máscaras pela contradição ação x discurso. Apesar de escrito em 1956, o Auto dialoga com nossa atualidade. Os defensores da “moral e dos bons costumes” são os mesmos que corrompem as instituições (na peça, a igreja e o casamento) e exploram os trabalhadores negando-lhes a dignidade.

Em cena, o grupo de atores se depara com o desafio de (re)criar personagens vivas na memória afetiva do público. Como ser original diante de atuações consagradas pela crítica e audiência? Nesse sentido, faço aqui um destaque para o Chicó (Pedro Carvalho) e para o João Grilo (Lucas Araújo). O primeiro entrega delicadeza e frescor em sua atuação. O tremer das pernas, a clareza na voz… traz muita verdade consigo. Nada é excessivo. O segundo traz o brilho da esperteza no olhar e em sua movimentação. Mas não só eles, outros atores também trouxeram originalidade em suas interpretações, apesar das partituras vocais de João Grilo e da Mulher do padeiro lembrarem em diversas ocasiões a de Matheus Narchtergaele e a de Denise Fraga. Fato que em nada diminui suas performances.

A montagem é resultado de um curso de formação – o Curso de teatro cênicas cia. Assim, sendo um curso livre, é comum que no grupo existam atores/atrizes com mais ou com menos experiência artística. Todavia, mesmo aqueles que apresentaram fragilidades em cena, conferiram o tom de simplicidade sugerido pelo texto à peça, tornando o clima leve, divertido. O resultado deste grupo no palco é harmonioso.

O enredo se desenvolve a partir das consequências das emboladas de João Grilo para ganhar algum dinheiro, que vão envolvendo cada vez mais pessoas. Nesse percurso vamos conhecendo mais de perto as personagens e o caráter destas.

Spoiler! (Duvido que alguém não conheça a história, mas como tem sempre um desavisado….)

Em determinado momento da trama, um incidente com cangaceiros leva grande parte do elenco para a morte. Nos momentos finais da confusão, somos surpreendidos com um tiro no peito do astuto João Grilo. Até neste momento, a construção da cena arranca risadas da plateia. Mas estas são interrompidas assim que João vai ao chão nos braços de Chicó. Os sons alegres que imperavam a poucos instantes são suspensos. A sensação que tive era que o silêncio era palpável. Parecia que, como um corpo único, toda a plateia prendia a respiração sem acreditar naquilo que via. Numa cadeira à minha frente, uma senhora levou as mãos em prece abaixo do rosto, como se clamasse para que o divino intercedesse por aquele rapaz cujo maior crime foi nascer pobre. Quando tirei os olhos da senhora e os coloquei de volta à cena, fui vendo tudo desfocado, eu mesma os trazia cheios d’água.

Fim do spoiler.

Após essa virada na história, assistimos ao julgamento dos digníssimos cidadãos de Taperoá, de Severino de Aracaju e seu cabra por suas transgressões. Somos apresentados a outros personagens: ao Encourado (diabo), a Manuel (Jesus) e à Compadecida (Nossa Senhora).

Nesse momento, novas críticas são feitas ao racismo, às instituições ambientais, religiosas e novamente à moralidade dos cidadãos. A iluminação, assinada por Rogério Wanderley, marca bem onde estão as personagens, se no vermelho do inferno ou ao azul do céu, o tom difuso no centro lembra que não haverá facilidades no julgamento. Como advogada de defesa, intercede por eles a Compadecida (“um apelo à misericórdia”). Cheia de graças, seu falar é manso como um abraço de mãe. Mulher do povo, Maria nos lembra das condições adversas em que os pecadores viveram.   

            Esta adaptação ainda traz consigo uma trilha sonora autoral composta por Douglas Duan, que também assina a direção musical. Com ousadia, ele tanto cria, como musica letras já existentes no texto. Quanto a esse aspecto, Ariano Suassuna (op.cit., p.48) dizia sobre suas peças que “A música deveria ser sertaneja: os tambores, os pífanos, as violas, as rabecas; a dança das facas, o xaxá, a orquestrinha do Bumba-meu-boi.” E é com esse espírito festivo que a peça é iniciada, com alegria e cantoria num ritmo que lembra algo como o baião.

            Entretanto, excetuando-se a apresentação da peça (primeira música) e o apelo à misericórdia (Valei-me Nossa Senhora), quando o canto aparece novamente, há uma quebra no ritmo do texto e da energia do espetáculo, como é o caso dos solos de Chicó e de Severino de Aracaju. Da mesma maneira, a música de encerramento, apesar de carregar em si alegria e remeter aos festejos populares, no dia em que assisti, após as falas finais, o público ansioso para ovacionar a beleza do espetáculo que assistira, estoura em aplausos e é “interrompido” pela parte musical. As palmas eram tantas que, na hora de entrar a voz, a Compadecida lançou um olhar incerto para Manuel. A plateia é ligeiramente “esfriada”, para poder voltar a aplaudir.

            Novamente retomo as palavras do precursor do movimento armorial,

[…] não me interessam nem o Drama psicológico e burguês, nem o Drama politizado do Teatro sectário. Sempre preferi a Tragédia e a Comédia, formas mais preferidas pelo Povo, mais próximas do espírito de nosso Romanceiro. (op.cit.,p.48)

Declaradamente adepto à poética clássica, o dramaturgo coloca em sua peça a figura do Palhaço, brincante popular, que exerce uma função semelhante ao Coro das tragédias gregas. Numa escolha acertada, na montagem do Cênicas Cia de Repertório, esse personagem originalmente singular é realizado por três atrizes, tornando mais explícita a retomada do fazer clássico. Diz Aristóteles (p.130) em sua Poética² “O coro também deve ser considerado como um dos actores; deve fazer parte do todo, e da acção […]”. E assim o é, em uníssono ou completando-se umas às outras, as palhaças situam a plateia dos acontecimentos nos entre atos, fazem trilha sonora, e com graciosidade adicionam uma pitada a mais de humor.

O auto da Compadecida supera a comédia pela comédia e nos faz refletir sobre a sociedade desigual em que estamos inseridos. Sob a direção do experiente Toni Rodrigues, a montagem da Cênicas Cia. De Repertório emociona e faz rir, mesmo que em tempos tão difíceis.

Referências

¹ SUASSUNA, Ariano. O movimento armorial. Recife: Separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento. V.4, n. 1, jan./jun. 1977.

² ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 4° ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1994.

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André Arruda
4 anos atrás

Também me diverti e me emocionei com essa montagem. Parabéns a todos! Muito bom esse texto de crítica. Obrigado, Ananda.

ana julia
2 anos atrás

bem lega

Diego
2 anos atrás

Muito lindo

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