Selvageria Cênica | Crítica de “As Lebres São Maiores Que Os Ursos”

por Vendo Teatro
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Por Luiz Diego Garcia
Recife, Julho de 2019
Foto de Ubira Machado

Selvageria Cênica

Uma das diferenças entre lebres e coelhos é o fato de que os filhotes das lebres já nascem com pequena capacidade motora e visual, enquanto que os filhotes dos coelhos nascem completamente cegos e ficam no ninho por algumas semanas até poderem sair sozinhos. É nesse misto de prontidão e vulnerabilidade que se inserem no mundo.

A sinopse poética do espetáculo “As Lebres São Maiores Que Os Ursos” é a seguinte:  “Minha força se inscreve na pele. Deságua nas plumas do meu cão e do meu gato. Soma minhas ideias às minhas dores universais. Sem pele eu corro no frio que insiste gelar extremidades marginalizadas. As lebres que correm comigo não mais correm como lobos; estamos cansadas, estamos apequenadas; mas arfamos. Os olhos vermelhos deslumbram as noites; as lebres que correm em mim somam meu tamanho mordaz. Os ursos salivam meu pescoço com opressões sonolentas que desabrigam-me meu próprio estado. Ao longo das florestas perdemos companheiras; transpassam-nos intransponíveis uivos de medo. O frio que circunda a sombra da lua é o sangue de outras lebres que aquece. Nossa força se inscreve da pele para dentro: nosso grunhido perdido é genético. Somos lebres sedentas, temos fome também, mas pequenas não sejamos; somos maiores que os ursos.”

O trabalho do Coletivo Despudorado que traz Brunna Martins, César Pimentel e Leonardo Alves em cena é avassalador. Contrasta toda a poeticidade do texto-sinopse com a firmeza de uma dramaturgia pontual e valiosa que busca em sua encenação um alcance múltiplo, mas não menos coeso.

Dois atores e uma atriz. Três cenas separadas que são amarradas por elementos de iluminação (do inspiradíssimo Fernando Rybka), cenografia e temáticas sócio-políticas. Dito isto, o público precisa trabalhar em parceria com o grupo para que As Lebres insurjam.

O espetáculo inicia com “Entre”, solo de Leonardo Alves que, reelaborando o espaço cênico, performa um momento de altas labaredas contagiantes: há o desconhecido, há o infantil, há demasiada dor e ebriedade, há o abismo inteiro, e o ator ateia fogo sobre tudo que há. Após a queimada de si, Alves lidera o público a adentrar o tortuoso caminho do não pertencimento. Mais cansativo do que não pertencer é pertencer e não sabê-lo pertencente. Numa disposição física precisa o público se exaure ao passo que é banhado da exaustão da cena. Sexo. Demasiado sexo. Sexo feito em demasia. A música relampeja sobre o texto e vibra em ondas acutíssimas; adentrando a análise psicológica duma geração inteira de dissonantes e de seus comportamentos, o público é deixado dramaturgicamente para que possa seguir mesmo sem um caminho a trilhar.

Finda a primeira cena, César Pimentel traz seu solo “Caixa D’água” que já presenteia os espectadores com uma mise-en-scène delicada e funcional. Nos desdobramentos de diversas personagens, Pimentel conjura em cena uma voz biográfica que escreve nas linhas do tempo-espaço uma história periférica trazida à luz com precisão, suor, cigarro e som. Ponto alto da composição “Caixa D’água” é o corpo do ator que, alquímico, torna-se múltiplo para, ao falar do seu, tornar-se universal. É nessa teia genealógica que o público é lacrado dentro de um mosquiteiro que mesmo protegendo, queima toda a Sodoma e Gomorra.

O som dolorido chama o público para a ancestralidade que Brunna Martins cose ao longo de seu solo “DeCorpo”; aqui o trabalho da atriz talvez seja o mais memorável das Lebres. Com uma dramaturgia que mescla poética dor e enxertos históricos, a atriz impulsiona uma reflexão histórica baseada na afrodescendência. Numa dança global que é mais potente quando em silêncio, o número arranha as córneas e tímpanos não sem antes refletir centenas de anos de histórias opressoras. Delicado trabalho de iluminação que tem seu êxtase quando lambem a atriz as chamas de velas sacralizadas postas num altar. O público é deixado no escuro então, tendo o corpo invadido por um grito destemido de mudança que, poético e musical, mancha a pele.

Ao fim, as lebres sedentas são maiores que quaisquer animais que vagam pela floresta cinza-esverdeada e surgem machucadas, mas não menos destemidas.

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