Rosemary Josefa Cardoso | Crítica de Mi Madre

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Lucas Oliveira
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022

Uma mulher

Ao entrar no teatro, no palco está a atriz Jhanaina Gomes, olhos em algum horizonte, um vestido vermelho – sangue – e pontinhos pretos. Sentada numa cadeira antiga, ao lado da mesinha antiga, com um jarrinho de flores novas. Vermelhas, como o vestido, como o batom da boca, como o sangue. Tudo começa contido, é a luz, a atriz, o cenário e o público entrando em silencioso respeito a tudo aquilo. 

Tudo é singelo. Sessão intimista, de poucos olhares da plateia, ela começa.

Levanta Jhanaina, chega à boca do palco sem limites e se apresenta, diz que é atriz, diz que vai contar história e a história começa pra dentro de si mesma, não é sobre o outro, é sobre si. A atriz, a personagem, uma mulher que extrapola qualquer tipo de mesmice, o corpo vivíssimo convidando o público a viver com ela a memória.

As mãos de Jhanaina ganham foco a parte, junto com a consciência de corpa viva, corpo-memória e uma voz potente que se emociona e vibra, seu poder de expressão imerge o público à cena, e no jogo vivido, é um aspecto cativante e bem trabalhado na construção da atuação e do espetáculo.

Jhanaina fala abertamente e direciona sua súplica – “Se eu cair você me levanta?” – do que ela fala?  Meu eu se pergunta. Jhanaina cai, o público a levanta. Ali eu ainda não sabia, mas Jhanaina ia falar da dor, da ferida, da solidão, do que é ancestral e dói.

Quatro mulheres

Se expande a luz, se expande o corpo, se expande a história. Tudo se expande dentro de nós. O movimento da iluminação diz e indica muitos caminhos na cena, ele é interessante, parece ser a extensão daquele corpo-memória, leva a quem assiste uma emoção de iluminar, propõe o desenho dos olhos, afaga a vista e é gostoso ver. A luz também marca o foco de diálogo da personagem de si com as outras de si. O público é usado como base para as personagens, essa visão contemporânea da plateia adensa e quebra qualquer barreira que pode existir, é a história dizendo que Jhanaina, Benedita, Ceça e Maria; as quatro mulheres, também somos nós.

Nas histórias que se sobressaltam, alguns estigmas são retratados em cena, além de afeto, Jhanaina, Mãe e avós são uma denuncia, um grito, uma oralização necessária. Denuncia-se o racismo a mulher negra, a violência física, psicológica, a inferiorização, as poucas formas de resistência. Uma herança oprimida nesse copo-memória cansado de carregar o que não precisa nem deve ser seu, tomando de si mesma, comendo-se para fortalecer-se. 

Quatro mulheres latino-americanas

A América latina está em vários lugares do espetáculo, desde o jeito cadenciado de pisar da atriz, os sapatos fazendo compasso, ditando o ritmo da cena, como uma dança flamenca, vivendo o compasso de uma música que fale sobre a vida. 

Até na presença daquelas mulheres-histórias-memórias que nunca estiveram ali, repare que isso é uma prova que aos poucos os holofotes dos palcos do Recife vão ganhando representações de história e vida de quem nunca fora representadas, esse movimento contemporâneo, Decolonial, latino-americano é uma grande potência dentro do espetáculo, uma vez, que cumpre um caminho contra o apagamento projetado à história, à ancestralidade, às mulheres e os estigmas de marginalização neste lugar colonizado. Vale salientar que essa tamanha força de protagonismo das narrativas marginalizadas pelo patriarcado está presente a partir de identidades quem tomam consciência do seu processo de autonomia, como em outros espetáculos e trago como exemplo “Luzir é Negro”, de Marconi Bispo e do Teatro de Fronteira.

Mas quando a gente se dá conta que não se trata somente daquela história em si, mas que é aquela história que exemplifica o terrível projeto do nosso apagamento, é que o espetáculo se expande ainda mais, toma a nossa história pra si e diz abertamente aos olhos, ouvidos e outros sentidos: Aquelas são quatro mulheres latino-americanas.

Cinco mulheres latino-americanas da cidade do Recife

Eu acabo por pensar en mi madre, Rosemary Josefa Cardoso. Que é também uma mulher Latino-americana da cidade do Recife. Preta. Que também escuta Odair José, e chora quando toca “Itamarcá”, de Reginaldo Rossi. A história da minha mãe também se mistura com aquelas ali por muitos e por outros motivos, motivos da violência, do abandono, da solidão, de ter que ser mais forte do que pode, de ter que se abandonar por tudo, menos por si; de sempre perder e não se acostumar com ganhar. Calculo rapidamente. Contando com a minha mãe, na verdade são Cinco. Cinco mulheres latino-americanas da cidade do Recife. Que as vejo nitidamente no palco. Jhanaina, Benedita, Maria e Ceça vestidas de vestido vermelho – sangue –, e minha mãe pairando na subjetividade da cena. Mas não só paira minha mãe, infelizmente, cabem muitas. Cabem minha vó, e a mãe e a vó dela, cabe Malu – que é mais que amiga e foi assistir a peça comigo – e a mãe a vó dela também. Cabem as minhas outras amigas e as amigas delas. Cabem no espetáculo a dor de todas as mulheres da América Latina.

Mas eis que a atriz não se resume na dor, o espetáculo é um retorno a si, é um retorno à ancestralidade de si mesma. Ela se despe, ela transborda, ela se derrama: a sua história, as suas outras mulheres. Rasga o espaço e o tempo, ingressa em um plano mítico e tão próprio. Ela agora é mais crua ainda, cada vez mais dentro. Ela é Transtemporal e dança, Mulher Camará e Cetés. A história não acabada, somente acaba o espetáculo, que me extasia e me emociona.

“a vida é um segredo, um dia se desvendará”.

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