Recife, chegou a vez de ouvir as Lecys! | Crítica de Leci Brandão – Na palma da mão

por Vendo Teatro
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Foto: Alberto Mauricio

Por Lucas Oliveira
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Primeira noite do Palco Giratório em Recife, depois de dez anos – repare que não são dez dias, maio de 2024.

Depois de tanto tempo, visivelmente as pessoas querem mais teatro, como é boa a festa da cena, o jardim do parque é tomado de suas grandes filas ocupando a vida dessa cidade nordestina. Reencontro amigos, abraço abraços de saudade e me pego muito alegre com a possibilidade do que vem: a história de Lecy Brandão, uma das vanguardas no processo de reconhecimento e entendimento da identidade do povo preto, indígena, sambista, lgbtqiapn+ e outros corpos dissidentes que cabem naquele pequeno-grande corpo que a cantora mangueirense tem. Entro e o palco é um terreiro, coberto de folhas, penso na máxima africana: “sem folha não tem orixá”, o cenário já me causa uma suspensão, já quero que os diálogos acabem, que as homenagens e agradecimentos findem, que a luz apague, que a história inicie.

Finalmente tudo começa, por Exu, como é da cultura, o bará, o corpo, androginia, de beleza quebrada e inteira. À vista esse Exu carrega tudo. O espetáculo propõe uma nova perspectiva sobre o que é Exu, digo melhor, ele na verdade coloca Exu como verdadeiramente sempre foi, sem os estereótipos coloniais, com a simplicidade de ser tudo. Aqui o simples gesto é o maior de todos, que maravilha poder encontrar perspectivas com essas – principalmente a mim, que tenho responsabilidade e propriedade a dizer sobre o assunto. Exu é um multi-letramento, o senhor da história, o pai e a mãe, a proteção de Lecy, o caminho dela cantar seu canto.

O cenário que traz folhas, e sem elas não há Orixá, também me diz que sem Orixá não existe Lecy, ou seja, o cenário é correspondente a si mesmo: é terreiro; a folha é o pensamento, é a palavra, o desejo, a música, o ritmo, um ponto Nagô. No palco há lindamente centenas de pontos em Nagô para Lacy.

O espetáculo se estrutura simples nas técnicas, mas grandioso na (re)invenção e na presença. Até na tentativa de quebrar paredes ele não quebra, não há paredes, não há coxia; há folha, de novo, sempre. A Luz é bem posta e aproveitada, encanta, e mais uma vez se faz sem pompa, simples, mas de detalhes importantes como o terreiro, como o samba da cantora, como o que se quer cantar.

Também penso que com um enredo desse: a história de uma mulher negra brasileira, que é sonhada ou vivida por tantas outras mulheres negras brasileiras, o espetáculo não há de ser pequeno, não consegue reduzir-se. Lecy é uma dessas tantas mulheres de Yansã que constroem diariamente este país com a força das brisas e das tempestades, a vida dela é um desafio às normas e aos contextos de opressão que o nosso povo enfrenta, como foi a vida de Mariele Franco, de Badia no Pátio do Terço, das mulheres Malês, na Bahia.

A história de Lecy é o Itan de uma Yansã negra e indígena brasileira. Ela nos diz:

eu vou cantar o que meu povo quer dizer!

E ela canta: a vida, o amor, a dor, a tristeza, a saudade, a solidão; também a alegria, o santo, o caboclo, Deuses e Deusas; só Lecy é uma escola de samba inteira, e tá lá no samba da mangueira, viva e imortal. O espetáculo carrega além do nome, traz a própria lecy mesmo, em sombras, gestos, jeitos, timbres, cores ali no teatro Parque. Aquela noite com certeza Lecy desceu do morro da mangueira e baixou no Recife, cantou seu samba no palco do parque.

E eu estava lá, na plateia, querendo tomar uma cerveja com o Zé do caroço, no morro do pau da bandeira, ou em qualquer outra roda de samba; sorrindo e chorando, me emocionando e aplaudindo de pé, sambando para meu coração-tamborim-escola-de-samba, até hoje, não respeitar o final do desfile da filha da guerra e da forja, nessa nossa Sapucaí-teatro-do-parque.

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