Recife, 20 Anos a Menos | Crítica de Altamira 2042

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Lucas Oliveira
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022

Antes de começar a atriz convoca do público ainda fora do teatro sete mulheres, divididas em rio ou rua, as leva para dentro, só depois, entramos. Todo significado ainda é superficial. Silêncio. O que virá? É um espetáculo tecno-xamânico, o que é? As tendências contemporâneas do teatro me excitam, o que se pode inferir sobre aquelas parafernálias tecnológicas no meio do teatro Marco Camarotti não se sabe a primeira vista, é preciso viver. Primeiro me acomodo na cadeira, depois no chão do teatro, alguém me diz que a experiência é melhor ali – NO CHÃO – me intrigo mais, acredito neste alguém. São muitos fios, caixas de som chinesas, leds, projetor, o cenário é um laboratório. É preciso viver. Teço, então, nas próximas linhas pontos de vida de um espetáculo potente.

DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL

As luzes que iluminam a entrada do público não se sustentam por muito tempo e se apagam, uma escuridão gigantesca e silenciosa se instaura, e a partir daí a luz de uma lanterna se acusa, ela observa, nós acompanhamos seu movimento, escutam-se passos que cruzam o palco entre as pessoas, a atriz agachar nua, tem em mãos um pen-drive, ela o conecta a uma caixa de som e, aos poucos, tudo é água e correnteza correndo, depois noutra caixa é mata, é bicho. É natureza. O suficiente para estarmos presente nela. Paramos para contemplar o escuro da mata no coração de Santo Amaro. Me surpreende a força da cena, e como de cara, o espetáculo causa uma experiência sensorial prazerosa e tão verdadeira, tudo através do som, como uma forma de reencontro com o que se quer falar. Já posso dizer que o trabalho com o som no espetáculo é algo como um primeiro destaque, pois além de demonstrar uma sensibilidade das potências tecnológicas dentro da cena, promove um processo de experiência deslocante e imersiva. Ao passo que o som é a melhor forma de fazer ali o espaço, as histórias, o rito da terra e do teatro; ele também sustenta o vínculo de verossimilhança entre obra, vida e público.

E o som ainda apresenta outras possibilidades da sua concepção, como as caixas chinesas que no seu efeito luminoso também possibilitam releituras. Nesta cena em que a atriz instaura o público numa experimentação dos sons da mata, essas luzes adensam o efeito da floresta, o recurso permite muito, até acessar a distopia de sentir estar em uma floresta através de tecnologias. É incrível e assustador ter a sensação de provar como em alguns anos, se seguirmos estes passos em que seguimos, já não conseguiremos sentir a mata pela mata, penso que isso é uma forma de dizer e alertar que já estamos longe Demais de alguma “salvação”, mesmo que optemos por alguma mudança, Altamira  2042 é agora. 

DO ASSUNTO

O espetáculo quer fazer refletir sobre a presença imperialista que enfrentamos hoje no Brasil e na América Latina. Fala sobre a falta de respeito da política nacional com as pessoas e com a terra. A atriz toma por base a cidade de Altamira, nas margens do Rio Xingu, no Pará, na boca da hidrelétrica de Belo Monte. Altamira 2042 de Gabriela Carneiro da Cunha apresentado no Festival Trema, em 2022, é o drama e o caos político comum, em um país que nunca deixou de ser colônia, que mais assassina ativistas, que despreza a vida e a terra, que se cala e apoia o desmatamento da Amazônia, o garimpo do estupro de crianças e o sequestro de uma comunidade inteira de Yanomamis. O espetáculo destaca também a resistência, principalmente da força feminina direcionada à luta. O feminino nas suas possibilidades concretas e encantadas. O espetáculo propõe claramente o enfrentamento, é uma denúncia e um chamamento. A coletividade é um tocante sentimento aguçado pela atriz e pela obra, uma vez que a denúncia não pretende somente falar, mas é também uma sensibilização e uma convocatória à luta e ao rito de transformação.

DAS IMAGENS

Algumas imagens também merecem ser apontadas em suas possibilidades. O auxílio da tecnologia em cena nos permite muita coisa, o encontro com essas possibilidades, as imagens da cabeça ser caixa de som, um projetor de vídeo, de nos comunicarmos por essas posições dos aparelhos, de nos sentirmos olhados por eles. A presença da caixinha chinesa possibilita refletir sobre a globalização, a mercantilização, as novas conexões que vivemos neste tempo; a tecnologia ganha outra subjetividade. O Corpo nu o tempo todo trata dessa nova configuração de natureza humana, estamos tão simbióticos ao Tecno, que não conseguimos mais dissociarmos dele, somos tecno-humanos, também? 

DO ANDRÓGENO DA ATRIZ

Algumas marcas de tendências contemporâneas também conseguem dizer sobre a obra, a atriz interpreta a fundição do humano com a tecnologia, ela em cena é uma ciborgue, tem o corpo extrapolado, sem órgãos, com órgão demais, transformada, afetada por tudo isso, por ela mesma, pela cobra mãe, pela morte, pelo medo, pela vida. Diante dos meus olhos eu vejo uma mulher biônica.

DO FEMININO

Da natureza, da terra, do rio, dos povos tradicionais nasce na cena o mito da grande cobra, uma mulher. As referências e o processo de entendimento do mito e do feminino, a reflexão sobre uma das simbioses naturais: a do humano e a natureza, inserido no processo tecno e correspondendo e se negando a ele. A mulher, a terra, a natureza Incorpora o povo, come o povo, regurgita todo mundo. A cobra, Boiuna, é a metáfora da criação, da transformação, do princípio da fertilidade. Nessa perspectiva, o feminino se aponta também como o nascedouro: a cobra é a terra, a terra é a mulher, a mulher é a cobra. A grande mãe, quem tudo gerou, a qual resiste, a qual transforma, a qual está na mira da morte, pois eles não querem somente esgotar a vida, o que eles querem é acabar com as fontes dela. Na sensibilidade de presenciar tudo isso em cena, logo me remeto às mulheres de Tejucupapo, sim, o Brasil está cheio dessas mulheres, são pioneiras na batalha, são elas que encabeçam a decolonidade.

DA VOZ QUE É BOA 

A repetição constante da ideia no espetáculo diz mais ainda, ele não é mais um anúncio de morte, é um retrato da morte que já acontece, é a circunstância do agora. Altamira 2042 é também uma forte Crítica ao progressiano, termo alcunhado em cena aos que acreditam em um futuro sem mata, sem história, em um futuro perdido. não há concreto que sustenta tamanho caminho inoportuno. Ir de frente, falar, dizer é a mensagem; clara, latente, repetitiva.

DAS CONSIDERAÇÕES SURGIDAS PELAS ESQUISITAS RUAS DE SANTO AMARO, TARDE DA NOITE DEPOIS DO ESPETÁCULO

Mas apesar de observar potencialidades muito boas, discursos pertinentes e linguagem inovadora, sinto também certa resistência em este conteúdo estar sendo executado por uma pessoa deslocada do lugar de  fala, não desacreditando nas potencialidades de quem conta, mas é inevitável minha ânsia pelo protagonismo correto, querendo sobressaltar o lugar de quem fala para que fale da melhor forma possível, uma vez que diante de tanta negação de falas, assegurar algumas é um bom caminho para essa concretização. É a questão da imagem, da presença. Não é somente voz que nós, povos Latino-americanos oprimidos, precisamos ter; precisamos ter voz, presença, ouvidos, cara, cheiro, gesto, lugar. Não que as vozes não estivessem ali, mas por vários momentos até agora, queria estar na presença da cena das próprias mulheres ribeirinhas-filhas-de-boiuna-mãe-d’água-do-Xingú, e todos seríamos rio. Ao mesmo tempo, a presença do cybercorpo branco e sudestino de uma mulher marca a conscientização e a democratização da fala que possibilita discussões e acesso, é também ainda uma forma que essas narrativas transpassem bolhas de privilégios.

DO BANHO DA PEDRA, DO RITO DA TRANSFORMAÇÃO, DO FIM 

A atriz banha a pedra, essa imagem me intriga, começa o começo do fim, convoca novamente as sete mulheres do início, o projetor projeta a imagem do projeto. A usina de Belo Monte. E em mãos são entregues uma marreta e uma estrovenga. A demolição começa, é o rito de transformação, um dos princípios do teatro, cada vez mais ganhando corpo, intensamente nos traz à vista a fúria, a necessidade de transformar. Se o caos é hoje a derrubada é hoje também, o rito de transformação é agora, precisamos de vida e de esperança para hoje. Precisamos restabelecer o fluxo do rio. Utopia, necessidade, esperança se misturam. É outro caos. O espetáculo não se preocupa em derramar-se a sentimentos de afeição, ele é direto, ele é seco, ele é intenso. Quer cortar. Altamira 2042 se preocupa com o dizer, por isso, aqui aponto reflexões do acontecimento da cena, da experiência, do que se mostrou. É um espetáculo tecno-xamânico, o que é? – A Distopia.

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