Realidade Absurda | Crítica do espetáculo “Cachorros Não Sabem Blefar”

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Ananda Neres
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2020

Quais são os melhores parceiros de pôquer: cachorros ou tartarugas?

Realizado pelos caruaruenses do Grupo? Que Absurdo!, o arquivo audiovisual da peça Cachorros não sabem blefar foi exibido na grade de teatro adulto do 27° Janeiro de Grandes Espetáculos, edição Conecta.

Gravado de um ponto fixo da plateia, o registro captura o palco de frente e não oferece outros planos ou enquadramentos diferentes deste. De modo que vemos uma chapa do palco, um plano geral e distante das personagens. Além disso, a captura de áudio em alguns momentos compromete o entendimento daquilo que é dito. Ressalto aqui os aspectos técnicos, visto que interferem na recepção da obra. Por vezes, precisei voltar a cena alguns segundos para compreender bem o que estava sendo dito, quebrando um pouco o ritmo da apresentação, para citar um exemplo. 

Essa questão nos leva a refletir sobre acessibilidade e o registro do teatro. Num primeiro momento da pandemia, diversos grupos disponibilizaram seus arquivos para desfrute dos quarentenados. Muitos dos que tive oportunidade de assistir, assim como o Cachorros… possuem caráter documental, sem uma preocupação maior com a recepção dessas filmagens, visto que a priori elas não seriam destinadas ao grande público. Não sendo, portanto, exclusividade do Grupo? Que absurdo! as dificuldades de captação de áudio e vídeo. É, na verdade, louvável e significativo que uma montagem tão recente – estreou em 4 de dezembro de 2020 – , do interior do estado e em meio à pandemia já possua registro e esteja na grade de renomado festival. Afinal, quais grupos, no cenário atual, têm condições de registrar suas obras? E de refinar o olhar destas, pelo uso de câmeras, a favor da dramaturgia?

Falando em interior, é importante ressaltar a presença maior da cena do interior do estado na programação desta edição, que, gerenciada por José Manoel Sobrinho, ampliou os diálogos para além da Região Metropolitana do Recife. Mais informações aqui (https://vendoteatro.com/noticia/confira-o-que-rolou-na-primeira-semana-da-27a-edicao-do-jge-programacao-segue-ate-o-dia-28-de-janeiro/2021/01/18/

A dramaturgia explora o que se convencionou chamar de Teatro do -Absurdo. Modo de fazer que aparece no fim da década de 1950 no pós-guerra, momento de instabilidade política, econômica e social, de desacerto entre o homem e o mundo estraçalhado pela guerra. Apesar do nome comumente relacionado à extravagância e fora do comum, o absurdo aqui é a ausência de sentido. O vazio.

Em cena, num lugar que não se sabe onde, há não se sabe quanto tempo, nem por qual motivo, cinco pessoas encontram-se presas. As personagens subvertem a lógica clássica em construções sintáticas coesas, mas com sentidos pouco usuais. Distintas entre si, essas pessoas possuem em comum apenas uma coisa: odeiam o nome Caio. “Ser um Caio” ou fazer coisas que “Só um Caio faria” é motivo para distinção, afastamento e segregação daqueles que carregam esse nome/estigma. Assemelhando-se a nossa sociedade, em que ser de determinado grupo social, étnico ou religioso é tido como uma possível justificativa para a intolerância e violência.  

Com um ritmo instigante, o texto de Byron O’Neill (Cia 5 cabeças/ MG) montado pelo Grupo? Que absurdo! percorre caminhos cíclicos. Cria-se a expectativa de que algo externo à cena quebre esse eterno retorno nonsense, mas não é o que acontece. A sensação que fica ao final é desoladora. Todavia se os contornos do texto assumem formas arredondadas, não se pode dizer o mesmo das atuações. Estas são como linhas retas, sem nuances. Falta – ainda – à voz e ao corpo também pronunciarem. Ampliar personagens tão singulares. 

Apesar de escrito num contexto histórico diferente do atual, relaciono Cachorros não sabem blefar com o Brasil pós golpe (2016), pandêmico, abandonado e entregue a empresários, no  qual estamos vivendo. Em determinado momento da apresentação, é dito: “Como chegamos aqui?”, que poderia, a princípio, estar relacionado ao pessimismo e ausência de sentido na existência, hoje é a pergunta que me faço. “Como chegamos a tal Estado? – ou mesmo, estado, diminuto de si. Parece que estamos, assim como as personagens, num ciclo infinito e inquebrável. A lógica do capital é absurda. Como na peça, a sensação é que esperamos algo externo a nós para sairmos da espiral. Contudo, a quebra só pode dar-se de dentro para fora, com o povo organizado. Esperar Godot não vai adiantar, é preciso agir.

O estreante Grupo? Que absurdo! acerta na escolha da dramaturgia. Agora é preciso reverberar o absurdo para além das palavras. Com o cenário sócio-político em que vivemos hoje, não faltará inspiração.

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