Quando vida e arte se misturam | Crítica de “Luzir é Negro!”

por Vendo Teatro
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Foto: Rennan Peixe

Recife, Março de 2020

Por Paulo Ricardo Mendes

Quando vida e arte se misturam

Certas situações cotidianas nos parecem tão ridículas ao ponto de optarmos por rir ao invés de chorar, não é? Claro que, o ato de rir de algo sério, não menospreza o que está sendo visto ali, mas é o nosso mecanismo de defesa. Os médicos psiquiátricos acreditam que “a risada é uma descarga da sensação angustiante que sentimos quando nos deparamos com um momento difícil”. Isso porque, por fora, estamos rindo, mas por dentro aquela cena nos incomoda profundamente. 

Para ilustrar melhor, posso citar algumas situações corriqueiras que fazem parte dessa explicação acima: um presidente do país, que em plena pandemia mundial, com dezena de milhares de mortos, insiste na ideia de tratá-la como mais uma gripezinha; ou ainda, os aumentos exorbitantes nas passagens de metrô e de ônibus, quando nada muda ou melhora. Parece até piada, né? Dou mais um exemplo: Certos discursos de líderes religiosos que usam o nome de Deus para disseminar práticas preconceituosas. De fato, é rir pra não chorar! Mas o que fazemos com isso? Só ficamos na risada?

No espetáculo Luzir é negro, dirigido por Rodrigo Dourado, o ator e cantor Marconi Bispo faz o uso de suas recordações e de diversas situações boas e ruins que lhe acometera, enquanto negro, nordestino, periférico, gay e pertencente ao candomblé, para montar um inteligente monólogo. Mas não só isso, ele utiliza de documentos (redes sociais, matérias e artigos de jornal, documentos históricos) e fatos de outras pessoas também para retratar a realidade e a partir de então, suscitar um debate e uma reflexão sobre algumas questões. Típico de um teatro documental, seguindo a vertente da biodrama, uma vez que o que está posto ali, mistura realidade e ficção. 

Vale ressaltar que esse tipo de trabalho de aproximação com o real já é uma marca do Grupo Teatro de Fronteira, que desde de 2007, desenvolve alguns projetos seguindo essa estética, como em Pizza, Coca e Crime: O Dia em que Pai Ubu Marcola Cagou no Brasil, uma cena curta de 15 minutos, com texto e direção de Rodrigo Dourado.

Esse fazer teatral que aborda a vida real e a arte, como parte de uma construção da dramaturgia, com base em histórias pessoais, de pessoas reais, para resultar em teatro, é possível perceber, mais explicitamente, em um dado momento de Luzir é Negro!, quando aparece no telão fotos de negros e negras que foram vítimas do racismo e Marconi conta o que acontecera com eles; somado ao desabafo sensível de alguns espectadores da peça. São relatos fortes e emocionantes que nos deixam com a garganta seca e os olhos com lágrimas.

Diante da dificuldade eminente, que é na vida real, não se enquadrar dentro dos padrões impostos pela sociedade, a narrativa busca explorar um olhar voltado para o tragicômico. Com essa abordagem, as situações fatídicas se tornam mais leves e com um ar de deboche. De fato, é rir pra não chorar!

É certo que Luzir é negro!, no entanto, expõe a fragilidade que é ser preto numa sociedade com sequelas advindas do passado escravocrata. Desde a tentativa de abuso que sofrera por um Padre quando era mais novo, abordando a sexualização do corpo negro; as barreiras que precisou enfrentar para entrar numa universidade pública e, logo após, conseguir bons papéis, que não fossem secundários ou de apenas figurantes. Claro que ao citar essas funções não estou reduzindo sua importância, nada disso, mas para um preto, infelizmente, ter um papel de destaque no teatro e na vida real, ainda lhe custa muito. 

A trama também perpassa a relação do pai de Marconi com o ator, sobretudo, na forma como ele encarava a sexualidade do filho. A tal da inquietação paterna ao ver os trejeitos do pequeno enquanto brincava com os coleguinhas, tentando endireitá-lo, “para virar homem”, é um retrato comum numa sociedade heteronormativa. Mas o ator traz essa discussão de forma leve e poética, quando relata que seu pai o levava para a praia e lá, após terem a conversa sobre o jeito do garoto, eles estreitavam os laços, com um divertido banho de mar. Mergulhamos com o ator nas suas recordações. 

Em um outro momento, ele relata como encarou a religiosidade em sua vida, pois mesmo sendo atualmente candomblecista, relutou para ser filho-de-santo. Tendo como um dos motivos dessa relutância, a visão estereotipada do candomblé, que é, inclusive, responsável por fazer das religiões de matriz africana a principal vítima de ataques por intolerância religiosa no Brasil. Entretanto, após algumas situações, o intérprete percebera o quão abençoado é por ser filho de Iemanjá com Oxalufã. 

Sobre um contexto geral, um aspecto importante a ser observado no espetáculo, é o cenário político em que fora criado, em meados de 2016, onde já se constava o crescimento de um discurso mais conservador e a ameaça de perda dos direitos sociais de uma minoria. Hoje essa frente de direita alcançou novas posições políticas e várias conquistas de uma parcela da população, sobretudo, as que vivem à margem, tem sido colocadas em xeque. 

Abrir o baú de recordações não deve ter sido uma tarefa fácil, somado a isso, o desafio de trazer suas vivências em cena e construí-las de forma atraente, com um texto que convidasse o público a embarcar nessa viagem no tempo, por mais de uma hora de espetáculo. Entretanto, Marconi consegue partilhar das suas experiências com proeza, de forma ilustrativa, e mostrando sua versatilidade no palco, pois canta, dança e atua. Tudo ao vivo, acompanhado de um músico e ancorado em referências valiosas: Gota D’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes; Os Negros, de Jean Genet; e o musical Arena Conta Zumbi, escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal.

Segundo o pesquisador chileno, Fernando de Toro, o diretor é o grande articulador dos elementos cênicos. Com base nisso, no espetáculo Luzir é Negro!, a intervenção do diretor Rodrigo Dourado em alguns momentos da trama, para trazer informações adicionais e conversar com o ator, permite costurar bem as histórias apresentadas, ora dialogando, enquanto o intérprete trocara de figurino, ora relembrando alguns fatos de um determinado momento da cena. Às vezes parecia que não havia nada ensaiado, era puro improviso.  

Apesar do atraso e de alguns problemas técnicos, nada atrapalhou o desenrolar da peça. Após apresentar as experiências acumuladas nesses mais de 20 anos de experiência no teatro, com uma dose de humor ácida – entre risadas desconfortáveis – Marconi já emocionado com os fatos e as fotos que constam em cena, ao julgar pelo tom da voz embargado e o olhar marejado, se põe a mergulhar nas lembranças abstratas dos seus antepassados. 

O que sobra de concreto ali, é a cadeira de balanço, que se mantém a balançar até o cessar da luz cênica; de valioso, o potente trabalho de reflexão e discussão proposto pelo espetáculo; e a certeza que a memória afetiva talvez seja um dos elos mais importantes que une as nossas recordações ao presente, assim como, é responsável por quem somos, como pensamos e agimos. 

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Marconi Bispo.
4 anos atrás

Querides que fazem o site, muito obrigado! Num momento como este, de tantas distâncias e incertezas, ler algo assim me deu uma sensação de estar sendo abraçado, amado, reconhecido, acariciado. Poxa… que feliz! Que massa!

Que xs Orixás e Encantadxs recompensem vocês por esta atenção e delicadeza. Que depois destas trevas a gente possa Luzir mais e mais! Um abraço!

Marconi Bispo.

Aline Lima
4 anos atrás
Reply to  Marconi Bispo.

A gente que agradece muito. Pelo seu trabalho e por esse lindo comentário. Abraço grande.

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