Foto: Divulgação
Por Cleyton Nóbrega
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Junho de 2023
Era uma sexta-feira, bem no final da tarde, quando cheguei ao Teatro Hermilo Borba Filho para apreciar o espetáculo “O Irôko, a Pedra e o Sol” do Grupo de Teatro O Poste Soluções Luminosas. Estava bastante ansioso para vivenciar essa experiência, sem dúvida, foi um momento tocante. Acompanho o trabalho do Poste desde 2016, através da experiência que tive ao assistir ao monólogo de Agrinez Melo, “Histórias Bordadas em Mim”. O enredo trazia uma narrativa muito particular, relacionada à vivência da atriz em diálogo com a prática de vida dos Griot (contadores de histórias africanos). O que me chamou a atenção nesse dia foi a dinamicidade do trabalho, a organicidade existente entre a interpretação, o texto, o figurino e um baú. Agrinez parecia flutuar em cena. Foi a primeira vez que escrevi uma crítica sobre algum trabalho cênico, e foi o primeiro trabalho do grupo que pude apreciar.
Com o passar do tempo e já trabalhando como crítico da Vendo Teatro, escrevi críticas sobre os trabalhos que descrevo a seguir: em 2019, fazendo parte de um evento promovido pelo Grupo O Poste Soluções Luminosas, ocorreu a III edição do Festival Luz Negra – O negro em estado de representação, onde assisti ao espetáculo “Sina”. Com texto de Andala Quituche, a peça foi premiada no Ariano Suassuna de Dramaturgia. O espetáculo dialogava sobre a vivência das pessoas da Zona da Mata Norte de Pernambuco e utilizava elementos que fazem parte da cultura popular, nesse caso, da tradição do Cavalo Marinho. Lembro-me como se fosse hoje da potência dramática dos atores em cena e da cenografia que rememorava os canaviais. Deparei-me com um elenco formado por atores negros, senti-me em casa.
Em 2021, devido à pandemia de Covid-19, os trabalhos para as pessoas que produzem a cena artístico-cultural no mundo inteiro tiveram que se adaptar às apresentações online. Foi nesse mesmo ano que assisti pela internet outro trabalho do grupo, a performance “IGBEIYW” (a palavra significa “casamento” em Iorubá). A performance fazia menção à ancestralidade, espiritualidade e focava nas novas masculinidades negras positivas, no respeito e carinho estabelecidos nas relações entre mulheres e homens negros, e na desconstrução de masculinidades tóxicas.
Ainda em 2021, assisti ao espetáculo “Cordel do Amor Sem Fim”, repleto de beleza e instrumentalidade. No trabalho, a estética poética da literatura de cordel era utilizada como um cânone da narrativa, além de abordar questões étnico-raciais, amor, vigor feminino, o poder e a força das famílias matriarcais. Um dia, se possível, gostaria de vê-lo ao vivo.
Acredito que ter experimentado presencialmente e virtualmente os trabalhos do grupo me possibilitou refletir sobre a importante e necessária construção de uma narrativa teatral para todos os negros e públicos. Isso me fez refletir sobre a representação dos negros no teatro pernambucano, que tipos de espetáculos circulam pela cidade e quais deles falam e representam determinados grupos de uma maneira que fuja do estereótipo e do preconceito contra as pessoas afrodescendentes e LGBTQI+.
“Irôko, a Pedra e o Sol” é um musical que ficou em cartaz nos dias 02, 03 e 04 de junho no Teatro Hermilo Borba Filho e tem como autor e diretor Samuel Santos, além do elenco composto por Agrinez Melo, Naná Sodré, Lucas Oliveira, Thallis Ítalo e grande elenco. Possui uma musicalidade belíssima com composições musicais de Beto da Xambá e Thúlio Xambá, que junto com Samuel Santos também compuseram as letras das músicas do espetáculo. A trilha sonora da peça é conduzida pelo Grupo Bongar, sendo uma verdadeira maravilha, com muitos elementos musicais lindos, onde a bateria, violas e tambores se juntam às vozes dos atores que cantam em cena. O figurino, por conta de Agrinez Melo, é bonito, com muitas estampas, adereços e colares que são utilizados ao longo do espetáculo. A troca de figurino dos atores ocorre durante a apresentação. Em cena, havia uma árvore, uma pedra e uma espécie de cama que chamaram muito minha atenção e foram utilizadas durante o espetáculo, movidas de um lado para o outro, já que tinham rodinhas em suas bases. A versatilidade da cama foi interessante, às vezes a cama era uma igreja, às vezes uma mesa de jantar.
A montagem trata principalmente sobre o amor, mas também explora temáticas específicas, como intolerância religiosa, racismo, homofobia e HIV. Aborda a maneira preconceituosa que muitas pessoas têm ao lidar com o amor alheio, problematiza a violência política, social e de gênero imposta aos corpos e vidas de uma comunidade quilombola que se percebe perdida em meio à religião protestante extremista. Também aborda a força e o poder do povo negro e a relação de pertencimento e espiritualidade junto aos orixás. O espetáculo tem belíssimos momentos, como os encontros amorosos dos protagonistas em cima da pedra, as cenas do cabaré e os momentos em que Exu aparecia, sempre com entradas impactantes. Os atores cantam e dançam muito bem, tudo muito bem coreografado e dividido, foi emocionante.
Confesso que um dos incômodos foi a maneira como, em um dado momento da peça, um menino diz para o outro que é soropositivo, e eles apenas se dão um abraço e seguem para outra cena. Fiquei confuso, toda a narrativa foi construída para que pudéssemos ver que os dois se amavam, eram parceiros, companheiros, e em um dos momentos mais cruciais, mais delicados desses dois juntos, tudo foi resumido de maneira muito rápida, com poucas palavras e um abraço.
É importante problematizar questões de violência com a população LGBTQI+. Somos o país que mais mata esse grupo no mundo, infelizmente. Essa realidade precisa mudar, e trabalhos como “Irôko, a Pedra e o Sol” trazem à tona ecos de violência silenciados em toda nossa sociedade. Devemos entender que o teatro reflete sobre nossas vidas. O que temos feito junto aos nossos para esclarecer ideias mal concebidas sobre a vida e o viver? As realidades de vida do povo negro e dos LGBTQI+ têm desencadeado, dentro da sociedade e por parte do Estado, trabalhos de segurança, saúde, educação, cultura e acesso devido a essas pessoas? Por quais motivos a intolerância e a ignorância parecem ser tão valorizadas? Essas e outras questões me atravessaram. Esse trabalho do grupo é forte, poético e atual. Que ele siga, e que muitos possam apreciar e refletir sobre si mesmos no mundo e o impacto desse mundo em nós. Acompanhar a construção dramatúrgica, cênica e artística do Grupo O Poste Soluções Luminosas tem sido sublime.