Foto: Thiago Mendes
Por Paulo Ricardo Mendes
Recife, Dezembro de 2019
Os Percalços e as Afluências do Teatro de Rua
“Todo piso será palco,
toda parede mural,
e a cidade inteira poesia”.
(Arte de rua)
A arte está em todo lugar, e ao afirmar isso, por mais que seja clichê, o fato é que numa dessas tardes de sexta-feira ensolarada, fui atravessado por dois momentos que me fizeram refletir sobre esta frase. No primeiro, estava no ônibus, na linha Rio Doce/Piedade, famosa pelo longo percurso, que mais parece estar fazendo uma tour pela região metropolitana do Recife. O bom desses longos momentos de ócio é que também dá para admirar as belezas dos lugares. E foi olhando pela janela, observando o mundo lá fora, que fui surpreendido por um rapaz, que entrou pela porta do meio do transporte coletivo, portando na mão um pandeiro, na boca, palavras carregadas de poesias, acompanhadas de um largo sorriso.
Tratava-se do ator, instrumentista e artista de rua, Arlison Vilas Bôas. Na apresentação, ele conversa, cativa e canta vários artistas da música popular brasileira, de forma improvisada, costurando as letras com versos escritos por poetas locais, como o Miró da Muribeca. Os passageiros, por sua vez, aplaudem e ajudam o rapaz com alguns trocados. Ali, a viagem se torna mais agradável e ganha uma trilha sonora especial.
Quilômetros adiante, chegando ao meu destino, no Alta da Sé, em Olinda, mais especificamente, em frente ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Preto Velho, vou ao encontro de outra expressão artística: o espetáculo teatral Pajeú das Flores, do Coletivo Caverna. Um dos integrantes, que também é responsável pela direção, Cláudio Lira, anunciara no megafone, repetidas vezes, que em instantes começaria a encenação.
Não demora muito, para que em meio às barraquinhas de artesanato, surjam os seis atores (Brunna Martins, Célia Regina, Flávio Renovato, Iris Campos, João Guilherme de Paula e Luiz Manuel) carregando uma trouxa, em direção à Praça da Sé. Fazendo barulho em todo trajeto, com o apito, violão e tambor, além de outros instrumentos cênicos, eles chamam atenção do público presente, convidando-o a mergulhar nas histórias que serão contadas a seguir.
A princípio, a referência do modo como andam e se comunicam com os espectadores, me remete à linguagem da palhaçaria, pelos gestos exagerados e cômicos dos personagens, como as variações de semblante, do alegre ao trágico, e a forma atrapalhada de dialogarem entre si. Até pelo motivo de ser um espetáculo feito a céu aberto, cuja linguagem teatral costuma utilizar das características das artes circenses nas montagens.
A condução das narrativas é leve, por meio de uma abordagem cômica, tratando de amores não correspondidos, amores partidos, amores vividos com uma boa dose de humor; é atrativa, por dialogar a todo instante com as pessoas, mesclando atores, bonecos e música ao vivo, e recorrendo a criatividade, com materiais recicláveis para compor boa parte dos objetos utilizados em cena, até pela temática envolver a natureza, mostrando essa preocupação com o meio ambiente. Ela também possui várias ondulações, pois transita pelo escrachado até o trágico, e a trama em determinados momentos nos leva para um lugar mais sério, abordando questões sócio-políticas: a seca e os interesses dos proprietários de terra em detrimento da massa, por exemplo; assim como, a migração dos sertanejos em busca de mais oportunidades, e a relação de pertencimento dos nativos com o rio, que corre ao contrário, serpenteando várias cidades do sertão pernambucano.
As histórias interpretadas são verídicas, resultado das entrevistas feitas pelos integrantes nas regiões banhadas pelo Rio Pajeú, no processo de construção da peça. O próprio integrante, Cláudio Lira, é natural de lá, fato que faz questão de mencionar nos primeiros minutos do espetáculo. Durante toda a encenação, ele aparece como um mediador e interventor da trama, como um diretor-ator, que participa levando considerações e curiosidades pertinentes do local. Cláudio “rouba” o microfone dos atores, para reafirmar seu lugar de fala. As intervenções são dosadas, para não atrapalhar o desenrolar da peça, apesar de sentir que esse é um momento de dispersão da plateia, pois há uma quebra na sequência de acontecimentos.
A praça então vira um palco, com um cenário natural da paisagem do Alto da Sé, e o pôr-do-sol, se encarrega de iluminar o espetáculo. Pelo fato de ser um teatro de rua, o público está imerso na cena, visto que não há demarcação de espaço. Por esse motivo também, o coletivo está sujeito a participações aleatórias, como aconteceu em um dado momento, quando um rapaz aparece querendo tomar um gole da cachaça ingerida pelos integrantes.
Nesse sentido, uma das tarefas do coletivo é lidar com o improviso, e os atores utilizam dele para lidar com a situação: põe a bebida no copo do indivíduo que invadiu a cena e, em seguida, ele sai do centro onde está acontecendo à apresentação. Interessante observar também a formação do público heterogêneo, composto por pessoas de diferentes faixas etárias, classes sociais e mentalidade. Nesse quesito esse tipo de linguagem cumpre uma função social e cultural, que é de levar a arte cênica para pessoas que nem sempre tem acesso a ela.
Outro desafio do teatro de rua é seduzir a plateia para que a mesma permaneça envolvida nas histórias o máximo de tempo possível, no entanto, diante do risco eminente do espectador não acompanhar desde o início da apresentação, a trama não obedece a uma ordem cronológica, ou seja, não possui início, meio e fim. Mas, diante dessa missão, o coletivo tem jogo de cintura e consegue prender a atenção do público, visto que boa parte esteve presente até o final.
O Pajeú das Flores chega a Olinda após uma sequência de duas apresentações na Praça do Diário, no Recife. Fico na curiosidade de saber como foi à participação do coletivo por lá. Mas diante do que foi apresentado aqui, a encenação traz de forma poética as nuances de um rio feiticeiro, porém, é mais do que isso, do mesmo modo que Pajeú leva arte, lendas e histórias por onde passa, o espetáculo ajuda a propagar a arte para as mais distintas pessoas e lugares, aproximando os atores da plateia, humanizando, permitindo sofrer interferências, mas também banhar o espectador com as mensagens transmitidas pelos signos, por meio dos integrantes, durante cerca de 40 minutos de apresentação.
O fato é que as cidades transpiram arte, e o Pajeú das Flores e a intervenção no ônibus feita por Arlison Vilas Boas são a prova disso. E nesses tempos em que as coisas andam imediatistas demais, a rua, sendo vista como um espaço perigoso, onde devamos caminhar apressadamente, o teatro pode ser uma válvula de escape dessa agonia cotidiana, levando o transeunte a desacelerar e a refletir sobre sua condição de sujeito dentro da cidade, seja qual for ela, assim como, a sua relação com as expressões artísticas.