Foto: Divulgação
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Maio de 2023
Que sorte têm os atores! Cabe a eles escolher se querem participar de uma tragédia ou de uma comédia, se querem sofrer ou regozijar-se, rir ou derramar lágrimas; isto não acontece na vida real. Quase todos os homens e mulheres são forçados a desempenhar papéis pelos quais não têm a menor propensão. O mundo é um palco, mas os papéis foram mal distribuídos.
— Oscar Wilde
O teatro é irremediável e inegavelmente polissêmico, não apenas pelas múltiplas linguagens e línguas que se fazem presentes, ele apenas é. Ponto. Para Wilde, o teatro é signo de possibilidade e liberdade de ser e representar aquilo que se quiser. Para Aristóteles, por outro lado, esse espaço sacro está imbricado à mimese, à arte de imitar e quiçá recriar, e ao catártico. Como disse: polissêmico.
Inseridos nessa plural possibilidade sígnica, a Cobogó das Artes apresentou nos palcos, sob direção de Adriano Portela e assistência de Poliana Luna, duas faces importantíssimas do teatro nos dois dias de apresentação de “A Última Volta do Ponteiro”: a bravura e a técnica por excelência. Com dois núcleos de atores, um para cada dia de apresentação, duas teatralidades com o mesmo roteiro foram apresentadas.
Ainda no espírito da dualidade, a teatralidade, que consiste em uma adaptação de um romance para uma representação teatral, traz a transição dos espaços e das culturas brasileira(s) e italiana, especificamente Recife e Florença. De modo que, irremediavelmente, tem-se uma narrativa cujo cerne está arraigado a dois povos cordiais. Porém, a fim de que não se equivoquem, o termo cordial o qual se faz presente é o mesmo que Sérgio Buarque de Holanda utilizou, o cordial de cordis, daquilo que provém do coração, que é pulsante e inegavelmente passional.
A narrativa traz como eixo norteador das transições de tempo e espaço uma narradora personagem, Anne, que em seus últimos momentos de vida relembra as reviravoltas de duas histórias distintas: a sua própria e a de seus pais — Catherine e Jean —, de modo que platéia e a própria Anne do passado vão desvendando os mistérios aos poucos, a respeito de todas as personagens envolvidas na trama. Embora esteja inserida no suspense, a obra dá pistas claras sobre possíveis desfechos e relações entre as personagens, de modo que, na teatralidade, ao contrário do romance, a chave para manutenção do suspense não se dá pelas entrelinhas e pistas, mas pelo performático dos atores e as possíveis surpresas que a direção poderia proporcionar, a partir da proposta da peça.
A história conta como elemento vinculante uma grande pergunta “quem é verdadeiramente o pai de Anne?”, apesar das dúvidas a respeito sobre a identidade da mãe da protagonista, o verdadeiro mistério está na identidade de Jean, não se trata do nome ou físico, mas o que se passa na psique dessa personagem. Identidade esta que, com o tempo, revelou-se perversa e um produto dos discursos patriarcais e arcaicos, os quais ocupam um lugar privilegiado nas relações de poder ainda hoje.
Catherine, Anne, o jardineiro, Adhemar, Mirrele ou qualquer outra personagem são apenas peões nos desejos e ambições de Jean. A teatralidade também convoca uma reflexão sobre a objetificação da figura feminina e na vileza predominante em nossa cultura, de modo que os amores são líquidos e as pessoas são corpos-objetos descartáveis, a serviço puramente do desejo. O texto, dessa forma, convoca, mesmo que à força, a delicadeza imanente no humano e nos faz deparar com cenas infelizmente comuns, mas que chocam, como o estupro, o abandono de uma mulher grávida e o abandono parental.
Também é importante ressaltar que, fora fundamental a assinatura de Adriano Portela na iluminação e na escolha sonoplasta — com um esquema de luzes primárias para transição temporal e espacial, bem como a trilha sonora em seu tom boêmio —, pois conferiram maior imersão na obra, de modo que o diretor declaradamente mostra sua fonte em Ziembinski e na dramaturgia rodriguiana. Por outro ponto, a quebra e reconstrução das paredes, por meio da ressignificação do espaço do teatro para atuação foram pontuais para apreciação e resgate da contemplação do público.
Esses elementos técnicos garantiram ao enredo a possibilidade da tradução da linguagem narrativa para a dramática. Além disso, permitiram ressignificar o ponto alto da história — o menos para o escritor que lhes escreve —, a metalinguagem com o próprio teatro, de modo que as personagens, como forma de virada e ressignificação de todas as maldades cometidas por Jean, trazem por meio da dramaturgia denúncias e desmistificações. As personagens, em um teatro, mostram o poder político e simbólico que a própria arte possui.
Por fim, como mencionado, cada dia de apresentação teve um núcleo de atores diferentes e cada apresentação foi única no mais amplo dos sentidos. No primeiro dia, apesar dos claros e expressos problemas técnicos, a equipe como um todo fez o possível para entregar ao público o espetáculo e assim o fez, apresentando a primeira face fundamental do teatro: a resistência.
Entretanto, é claro, existiram aqueles que se deixaram abater pela emoção e nervosismo, ou foram confiantes demais em si e entregaram performances que não condizem com o tempo de estrada, resultando em falhas de marcações e incoerências estéticas entre a performance da personagem (como o sotaque) e a proposta da obra. Já outros, como Madu Melo, Eddie Azevedo, Ericsson Ferreira e Anna Ferreira revelaram que, por vezes, menos é mais, os famosos cacos não cabem a todo instante e o show deve e irá continuar, apesar das adversidades internas e externas.
No segundo dia, por outro lado, outra face surgiu: a da técnica. O teatro é terapêutico; é acolhedor; é um amigo; é antigo; dá espaço para diversões; permite o simples e o exagerado, mas demanda e merece respeito e é desta técnica que falo. A técnica de levar a sério, ainda que se divertindo. Apesar de não haver problemas técnicos no segundo dia de apresentação, havia tensão nos primeiros quinze minutos de espetáculo, uma lâmpada explodiria com a pura eletricidade que passava do palco para plateia, mas com o tempo os medos do dia anterior foram dissipados, os atores e as atrizes do segundo núcleo retomaram sua intimidade com o palco e o espetáculo fluiu. Fluiu com a coerência estética proposta e o respeito que os palcos demandam.
Sinteticamente, embora o texto já esteja demasiadamente extenso, a teatralidade “A Última Volta do Ponteiro”, apresentou por dois dias consecutivos duas peças opostas, com elementos completamente diferentes e belezas distintas, as quais atingiram seu objetivo principal: conectar a arte ao público. Além disso, trouxe consigo a relevância política que o teatro tem e descortinou, para aqueles que tiveram o prazer de assistir as duas apresentações, a multiplicidade de faces e possibilidades presentes nessa entidade linda, chamada Teatro.