O que há de risível na violência contra a mulher? | Crítica de “Trilogia do Feminicídio”

por Vendo Teatro
0 comentário

Foto: Rogério Alves

Por Ananda Neres
Recife, Novembro de 2019

O que há de risível na violência contra a mulher?

Sexta-feira à noite no Teatro Barreto Júnior, o público aguarda entre conversas a “Trilogia do Feminicídio”, prevista para às 20h, pelo 21° Festival Recife de Teatro Nacional. A Trilogia é assim nomeada por ser composta por três peças distintas que trazem como mote a violência contra a mulher, são elas: “Coisas que acontecem no quintal”, “Triz” e “Aparecida”.

Quando finalmente entramos, às 20h30, nos deparamos com um corpo estendido no chão do corredor principal. Após acomodados, um grito de dor assusta e desperta a plateia para a história que será contada. Somos apresentados a Nico, homem trans violentado na própria casa. A performance é rasgante.

Em “Coisas que acontecem no quintal”, três vivências são contadas. Três corpos distintos falam, conscientemente ou não, das violências que sofreram. Além de Nico, conhecemos uma caricata pastora e uma senhorinha parteira, todes três encarnades brilhantemente por Tatiana Azevedo. É surpreendente, não só a atuação, mas o feeling que a atriz possui para interagir e conduzir plateia. No dia em questão, um grupo de adolescentes duma escola próxima assistia à encenação e interagia com risos e comentários, diga-se que em alto e bom som. Rompendo o tecido fino da quarta parede, é a eles que a personagem se dirige e escancara o absurdo que é rir da violência que sofreu.

Também é surpreendente que após tanta luta feminina ainda seja risível uma história de violência. A dramaturgia passeia pelo cômico e pelo dramático, e me incomodou, muito mais que a cena, quando dramática, o riso majoritariamente masculino. Qual a graça de ouvir uma mulher dizer que apanhou? É engraçado saber que 1,3 milhões de mulheres são agredidas por ano no Brasil[1]? Ou está a graça na estatística: 43,1% dos casos de violência ocorrem dentro da casa da própria vítima.[2]? Esse, entre outros motivos, justifica porque precisamos falar da violência contra a mulher, por muito tempo silenciada e ainda naturalizada em nossa sociedade, em todos os âmbitos possíveis.

Entre a primeira peça e a segunda, a plateia é informada que precisará retirar-se da sala cênica para a montagem do próximo cenário. Levanta. Sai. Espera. Volta. Senta.

“Triz” conta a história de duas operárias. A luz marca as esteiras de produção. Nelas, deslizam as proletárias num movimento repetitivo fabril. Uma delas sofre de violência doméstica e em determinado dia chega mais “apanhada” que o normal. A narrativa se desenvolve no vai e vem dos corpos e em ritmo lento. Essa lentidão tanto incomoda positivamente como enfada a plateia. Também, o uso de longos silêncios, às vezes longos demais, perdem o objetivo e tornam-se cansativos a quem assiste.

Além de nomear uma das personagens, “Triz” nos faz refletir quantas mulheres vivem por um triz da morte por amarem demais, por medo, por dependência financeira, emocional…. por serem mulheres. Quem as ajuda? Quem é por elas? O que temos feito para mudar esse cenário?

Como a primeira peça, esta também se subdivide em três momentos. É como se assistíssemos a trilogias dentro da trilogia, movimento interessante, mas enfadonho.

Após o término da segunda peça, novamente nos é informado que precisaremos nos retirar do local para a montagem do próximo espetáculo. Novamente. Sai. Espera. Volta. Senta. Desconheço os responsáveis pela escolha do teatro, se a produção do grupo ou do festival, mas talvez o Barreto Júnior não tenha sido a melhor opção. A dinâmica de entrar e sair, além de desgastante, toma um tempo a mais que, somado ao tempo das apresentações e do atraso de meia hora, culminou numa apresentação de aproximadamente 3 horas. Uma verdadeira maratona. Mas não só, imaginemos se fosse uma sexta-feira de casa cheia, quanto tempo levaríamos nessa movimentação?

Visualmente instigante, “Aparecida” encerra a trilogia com uma nova trindade: a pedinte, a santa  e a sargenta. Qual motivo leva uma Aparecida a ser invisibilizada, a outra desacreditada sócio-profissionalmente e outra reverenciada, se são todas mulheres?  O monólogo de Gheuza Senna dá algumas respostas e, diferente das peças anteriores, traz além do recorte de gênero, o racial. A narrativa trata de Aparecida, sargenta que investiga um caso de femicídio e das situações de preconceito e violência que esta sofre no processo.

É importante ressaltar que todas as apresentações são baseadas em histórias reais de violência. Mulheres reais. Mortes reais. Homens reais. Para além da violência, o fio que conduz a Trilogia é o grito, presente em todas as partes e atrizes que a compõe. Grito preso na garganta de muitas mulheres. Grito que tentam abafar todos os dias. Grito que precisa ser gritado. Grito que precisa ser ouvido. Grito pelas que foram e que ainda serão. A Trilogia do feminicídio é um grito potente contra o silêncio patriarcal.


[1] http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34977&catid=8&Itemid=6

[2] Op. cit.

0 comentário
Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Related Posts