O Plural É Simples | Crítica de “Noites Sem Fim”

por Vendo Teatro
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Foto: Teresa Maia.

Por Matheus Campos.

Recife, janeiro de 2020.

O Plural É Simples

“Que a arte nos aponte uma resposta

Mesmo que ela não saiba

E que ninguém a tente complicar

Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer

Porque metade de mim é platéia

E a outra metade é canção.”

— Oswaldo Montenegro

Ao abrir a vigésima sexta edição do Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE), Geraldo Maia com sua voz calma e agradável canta e homenageia Capiba no espetáculo Noites Sem Fim. E durante o desenrolar e envolver do show, a plateia se faz metade plateia e metade canção, reagindo de diferentes formas formas, ora aplaudindo e gritando elogios; ora cantando e sendo cantoria. O título da apresentação vem dos versos da música de Capiba “Recife, Cidade Lendária”.

“Eu ando pelo Recife, noites sem fim

Percorro bairros distantes sempre a escutar

Luanda, luanda, onde está?

É alma de preto a penar”

E já afirma o propósito mais que essencial da valorização e resgate cultural presente em “Noites Sem Fim”.

A apresentação do Geraldo Maia também reza pela simplicidade, desbancando opiniões, ainda, talvez, arcaicas de que shows de abertura devem ser pomposos e repletos de todas as “frescurites” que a abertura de um grande evento, supostamente, deveria ter. Além disso, o espetáculo opta por novos arranjos musicais cujos responsáveis são: Betto do Bandolim e Renato Bandeira que criam novos “moldes” para os clássicos de Capiba, usando apenas cinco instrumentos: um violão de 7 cordas (Alberto Guimarães), um bandolim (Betto do Bandolim), um baixo acústico (Bráulio Araújo), um acordeon (Júlio César) e uma guitarra semi-acústica (Renato Bandeira).

A iluminação do espetáculo, sob os cuidados de Cleison Ramos, atende a proposta presente no show e em seu título “Noites Sem fim” ao caracterizar o teatro com pequenos e singelos feixes azuis de luz que pontilham o teto, plateia e palco do espaço teatral, fazendo com que todo o local — incluindo espectadores —, seja um grande céu estrelado de noites sem fim. Entretanto, não somente os feixes de luz atendem a proposta da noite, mas também os holofotes, que iluminam os artistas, cumprem o seu devido papel, ao reproduzirem uma iluminação que, inicialmente, no show, se caracteriza com cores quentes e primárias como o vermelho e o amarelo; e com o passar dos minutos e músicas migra para cores frias e noturnas como o azul e o violeta, assumindo a representação das noites que sempre começam quentes/fervorosas e com o arrastar do tempo se tornam frias/calmas/silenciosas, no Recife, Olinda, outros tantos lugares em Pernambuco e quiçá nordeste.

Uma das características mais interessantes durante a apresentação de Geraldo Maia é a sensação mimética no ar — Uma ideia de criação e recriação de imagens —, devido às músicas cantadas. As criações de Capiba ganham vida no imaginário e as ruas e ladeiras de Olinda e Recife estão ali. Diante dos olhos da plateia se forma um gostinho único de praça do Carmo, de Recife Antigo, de maracatu, de frevo, de coco, de praias, de sertão, de carnaval, de quem só conhece mínima e intimamente Pernambuco pode entender. Outro ponto importante, que necessita e deve receber atenção, são os momentos de transição entre canções, que são marcados pela presença da recitação de poesias. Esses momentos ganham grande valor significativo, pois são mais um elemento coesivo na apresentação, que auxiliam no fator mimético do show e também, além das músicas, reafirmam a capacidade pernambucana incrível e inesgotável para a arte ao se recitar poetas pernambucanos como Carlos Pena Filho no trecho recitado de seu poema “Do alto do mosteiro, um frade a vê” dedicado a Gilberto Freyre:

“Olinda é só para os olhos,

não se apalpa, é só desejo.

Ninguém diz: é lá que eu moro.

Diz somente: é lá que eu vejo”

Entretanto nem tudo corria bem, um espetáculo não se passa exclusivamente no palco, mas também na plateia e por parte da plateia há aqueles que apreciam, respeitam e fazem parte do momento como um todo; mas também há aqueles que desrespeitam o artista, o espaço e o colega ao lado tentando apreciar o momento, com seus celulares, conversas e flashes abusivos que podem até estragar a experiência da noite. E de repente, o espaço que antes trazia uma imagem de valorização cultural, através da música, se expande também para uma reflexão e crítica à falta de educação e respeito de muitos pelo/no espaço artístico. Muito embora, tal crime contra a arte se faz ser esquecido por um detalhe incrível na apresentação e foi deixado por último, nesse texto, propositalmente, por ser a “cereja do bolo” de “Noites Sem Fim”. Pois além das músicas, iluminação, figurino, poesias e espaço, no canto direito do palco, sob um holofote exclusivo, há a presença do revezamento de dois intérpretes de libras — língua brasileira de sinais. Além de ser um ato belo de inclusão artística-social, também é a manifestação e afirmação de que o espaço artístico é e deve ser para todos. A beleza da língua brasileira de sinais é manifestada pelos dois intérpretes e ganha a atenção da plateia, “rouba”, muitas das vezes, os olhos antes voltados para Geraldo Maia e músicos e recebe diversos elogios durante a apresentação.

E o mais interessante é que as músicas de Capiba, sob a perspectiva da libras, parecem ganhar novos horizontes e emoções, ganham mais vida e se tornam mais “palpáveis”. O show de Geraldo Maia é ressignificado para algo além de musical quando a recitação das poesias e a interpretação ininterrupta das libras se unem à configuração inicial do espetáculo — músicas —, gerando desta forma um ato performático. Único e muito mais significativo.

E assim o janeiro de grandes espetáculos se inicia com uma performance que alcança a simplicidade e pluralidade no cerne artístico. O que acredita-se que seja e deva ser a intenção do surgimento do JGE, a representação do pluralismo por meio da arte e valorização das culturas.

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ROBSON Teles Gomes
4 anos atrás

O exercício da crítica, do escrever uma crítica, do pensar são um excelente caminho! Siga em frente, Matheus!

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