Noite de Saudosismo e Visibilidade | Crítica de O Boteco e a Dona

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro 2023

Vejam só que festa de arromba
No outro dia eu fui parar
Presentes no local,
O rádio e a televisão
Cinema, mil jornais
Muita gente, confusão

Trecho da música Festa de Arromba, de Erasmo Carlos

Na noite da última sexta-feira, o clima era de festa. O Teatro de Santa Isabel estava iluminado para receber a apresentação do espetáculo “O Boteco e a Dona”, da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (AMOTRANS – PE) com direção de Chopelly Santos, dentro da programação da 29º edição do Janeiro de Grandes Espetáculos (JGEs). Vale ressaltar que no mês da luta por direitos da comunidade trans, comemorado no dia 29 de janeiro, mais uma conquista: pela primeira vez o imponente teatro recebeu um elenco formado por transexuais, após outras edições do festival terem sido marcadas pela falta de representatividade na equipe e nos espetáculos.

O musical “O Boteco e a Dona” é ancorado nos Talk shows dos anos 60 e narra a estreia do primeiro programa de samba na TV TUPI, apresentado pela célebre sambista Elizeth Cardoso, conhecida também como “A Divina”. O público predominantemente da velha guarda, fãs e também admiradores do samba pôde prestigiar e reviver na peça canções e figuras importantes que estavam ganhando notoriedade na década de 60.

Ao abrir as cortinas observa-se um cenário que de imediato remete de fato a um boteco tradicional, sem grandes produções, com mesas e cadeiras de madeira, um bar com um garçom servindo os petiscos e discos de vinil pendurados no teto com o nome da peça. Uma assistente de palco fica segurando uma plaquinha para orientar a plateia na hora que fosse para aplaudir ou ficar em silêncio, bem nos moldes dos programas televisivos que perduram até hoje. Os figurinos dos personagens também ajudaram a criar uma atmosfera de época, com roupas brilhosas, coloridas, cortes simétricos e geométricos, com uma pegada espacial and rock’n roll.

Já nos primeiros minutos do musical sobem ao palco nomes importante da música brasileira, como Elza Soares, interpretada por Rosa Fernandes; Linda Batista, por Suellany Carvalho; Chico Vieira como Wilson Simonal; Antônio Oliveira interpretando Sérgio Bithencurt e a Sharlenne Esse fazendo o papel de Elizeth Cardoso. Na peça, a cantora Elizeth fica responsável por receber os convidados, que cantam músicas do seu repertório, ao mesmo tempo que aborda temáticas relacionadas à vida pessoal de cada artista. Durante o diálogo, é possível estabelecer conexões com a época através das linguagens usadas em determinados momentos pelos atores e atrizes, como “broto” e “boa pinta”.

O espetáculo apesar de se passar no programa voltado para a boemia do samba traz também o aparecimento do rock brasileiro e o movimento cultural da Jovem Guarda na grade de programação. Uma verdadeira salada musical que para além das canções dubladas e dos personagens, vai situando a plateia sobre os marcos e transformações da música no período, como o surgimento da bossa negra, criada para evidenciar a sonoridade inspirada nos ritmos afro-brasileiros. Do mesmo modo, a partir dos diálogos observa-se também um retrato do comportamento tradicional que permeavam o pensamento de alguns artistas, como a decisão de deixar de cantar após o matrimônio para cuidar do lar.

Para contar sobre essas histórias, aos poucos, o musical vai nos revelando novos personagens que vão somando ao elenco presente no palco. Aparecem figuras como Celly Campelo e a do Tony Campelo, com interpretação de Ruby Nox e Marllon Mascarenhas, respectivamente, e também o trio de sucesso formado por Roberto Carlos, com atuação de Aurélio Lima; Erasmo Carlos por Wottson Carlos e Soll Paixão como Wanderléa; sem esquecer de mencionar o papel de Chopelly Santos, que leva ao palco a figura da cantora Martinha. Tendo como destaque a atuação da Ruby, que consegue imprimir o jeito doce e divertido da intérprete de “Estúpido cupido”, sem torná-la caricata. Outro papel que se sobressai é o da experiente Sharlenne como “A Divina”, que vai costurando com humor e improviso as histórias contadas em cena.

No entanto, apesar de explorar temas relacionados a vida dos artistas e para além da similaridade dos personagens, o roteiro de um modo geral esbarra na superficialidade de algumas interpretações e de discussões rasas, além de uma excessiva sequência de músicas dubladas pelos atores e atrizes em um curto espaço de tempo. O deleite do musical parece muito mais estar angariado no desfrute das recordações da época e nas homenagens do que no aprofundamento como um todo; sendo um entretenimento que merece ser assistido, sobretudo, para os apreciadores da música brasileira da década de 60.

Com quase duas horas de espetáculo, o clima ao final do musical é o mesmo do início: de festa. A sensação é que acabara de finalizar ali mais um programa de TV. Mas a comemoração mesmo é pela estreia, não por ser o primeiro programa de samba no ar como conta a sinopse, mas pela conquista de mais um espaço para a população trans: o palco do Santa Isabel e a presença no festival. Isso fica claro nas palavras finais de agradecimento da diretora Chopelly Santos, quando revela emocionada que foi uma vitória tornar possível mais uma vez a apresentação daquela montagem. Por tudo isso, o desejo é que seja apenas o começo dessa ocupação T, não só no JGEs, mas em todos os festivais.

Naquela noite de sexta, para quem estava buscando “uma festa de arromba” encontrou no musical “O boteco e a Dona” um prato cheio de diversão, hits e uma noite de saudosismo.

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