Natureza e Ofício | Crítica de Pedras, Flor e Espinho

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2023

Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.
— Vidas Secas, Graciliano Ramos

Dentre os maiores males que existem nesse mundo, talvez o maior deles seja o mundo; porém, é claro, não o mundo físico, biológico e natural, o antropológico, esse esquema abstrato moldado por forças contrárias — manifestos em alijados e tiranos. Na obra Vidas Secas, por exemplo, é evidente que para além do óbvio referente ao cenário existente ao redor das personagens, que é naturalmente seco, as vidas das personagens são secas, de modo que as realidades vigentes que circundam os indivíduos na obra secam e dissecam suas vidas e essências até a mais refinada e requintada gota de desesperança. 

A partir dessa ótica, em comparação contextual, surge a obra Pedras, Flor e Espinho do grupo ACA produções. A dramaturgia situada no sertão trouxe a história de dois núcleos de personagens que se cruzaram devido a uma ação: Isaque, um jovem vivendo num contexto de opressão pelo cangaço, denunciou o bando de Lampião. Por sua vez, o bando iniciou, em um ato de vingança, sua perseguição pelo rapaz e sua família. 

Todavia, o conflito existente não ocupa espaço fundamental para a beleza do espetáculo, muito embora a história tenha suas nuances e charmes. Os elementos estéticos e coesivos existentes na obra ganharam espaço e destaque na construção do espetáculo, de modo que a construção cenográfica de Emmanuel Matheus é belíssima em sua simplicidade mimética.

Além disso, a combinação dos elementos musicais de Lucas Castro com a construção e desempenho da iluminação de Cleison Ramos/Farol Ateliê de Luz garantiram ao espetáculo a coesão imagética respectiva aos sentimentos predominantes nas cenas, bem como passaram, por vezes, uma manifestação do quão cansativo e enclausurante pode ser o expansivo árido do sertão. Mas, para além dos elementos sinestésicos, são as particularidades e complexidades psicológicas das personagens, juntamente ao implícito do histórico social, que garantiram a verdadeira beleza no processo.

E eis um dilema existente na arte, que por vezes surge: triste porque belo, belo porque triste. As nuances das histórias de cada personagem e suas questões psicológicas particulares proporcionaram ao público uma formação de sentimentos empáticos. As personagens, por meio dos corpos emprestados dos atores, não apenas dizem que amam, choram e se cansam, elas o fazem, ocultando, por vezes, verborragias presentes nas cenas.

Mas, se por um lado existiram verborragias, também houve instantes simples e necessários presentes na obra, os quais perpassaram o oco presente nas palavras e garantiram instantes de catarse. À guisa de exemplo, uma das cenas mais comoventes e bonitas foi a morte da personagem Pé de Jambo, devido à simplicidade e clareza . Assim como Baleia, Pé de Jambo, o cavalo nomeado devido ao seu gosto pela fruta, não resistiu às condições caóticas da viagem e se encantou.

Nesse instante, a partir de um breve diálogo entre Pé de Jambo (Thiago Augusto) e Honório (Dante de Moraes), os não ditos, que gritavam no fundo dos contextos da teatralidade, foram revelados. É válido, portanto, abrir uma aba a parte, para ressaltar a excelente atuação do ator ao mimetizar o animal — com auxílio do boneco desenvolvido por Emerson Rodrigues — e ao ator que deu vida ao Honório, por sua atuação delicada e precisa que, por vezes, preencheu aquilo que a palavra, por si, não poderia jamais transmitir. 

Essa cena, assim como outras, — a exemplo, o diálogo que revela a história da personagem Luci — trazem o mais fundamental na obra: o verdadeiro elemento antagônico. Com cangaço ou sem cangaço, existem verdadeiros elementos antagônicos na obra, de modo que a questão do enredo que envolve o uso do cangaço e o elemento de vingança poderiam ser excluídos e a dramaturgia ainda assim teria seu efeito. Mais do que a seca causada pela inclemência da natureza, ou a tirania do cangaço, o que oprimia e ainda oprime tantas e tantas famílias, na literatura e fora dela, é a relação de poder e dominação estabelecida pelos próprios homens.

O surgimento de grupos opressores e revoltosos; a herança discursiva misógina; a violência contra o gênero feminino; as questões arcaicas ideológicas ainda presentes nas regiões interioranas (e centrais também) e tantas outras problemáticas são fruto de uma lógica doente e hegemônica em que o surgimento de grupos como o cangaço ou o surgimento de grupos de refugiados são mero produto de uma construção política e ideológica, de uma necropolítica, como aponta as teorias de Achille Mbembe (2016). Assim como em Vidas Secas, Pedras, Flor e Espinho não se trata de um conflito entre mocinhos e bandidos, embora superficialmente talvez se apresente assim, mas as narrativas apresentadas desvelam  a velha questão das relações de poder — assim como aponta Foucault (1979) —, as quais, na teatralidade do grupo ACA Produções são apresentadas como um enredar de complexidades das personagens enquanto partes de uma engrenagem a serviço de um sistema de exploração, humilhação e, a posteriori, morte. 

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