Na Bagagem: Urgências, Fugas e Afetos | Crítica de Alguém Pra Fugir Comigo

por Vendo Teatro
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Foto: Maíra Arrais

Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia

“A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar)

De acordo com o relatório anual da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), cerca de 79,5 milhões de pessoas ao redor do mundo estavam deslocadas até o final de 2019 por guerras, conflitos e perseguições. Em 2024, estamos presenciando um outro tipo de desastre, dessa vez, provocado pela chuva no Rio Grande do Sul, que obrigou milhares de gaúchos a se retirarem de suas casas e a procurar abrigo em lares de parentes, escolas e centros comunitários seguros. Em ambos os casos, a fuga foi a única opção possível naquele momento, para que pudessem ter uma chance de sobreviver.

Ao longo da história, escutamos, assistimos e presenciamos outros tipos de urgências que fizeram a civilização buscar um refúgio, seja pela crise climática, ética, social ou mesmo quando o medo, angústia, sonho e dor são maiores que qualquer vontade de permanecer inerte, de modo que, a casa já não é mais tão segura, que preferimos optar pela boca do leão. Em Alguém pra fugir comigo, espetáculo, quer dizer, trabalho – como o Resta 1 Coletivo de Teatro prefere nomear, que fez parte da programação do Festival Palco Giratório, no Recife, somos espectadores das fugas, encontros, desencontros e partilhas das atrizes Analice Croccia, Ane Lima, Clau Barros, Pollyanna Cabral e dos atores Caíque Ferraz, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. 

Em cena, eles trazem diversas situações e personagens que atravessam as barreiras do espaço-tempo. No primeiro momento, assistimos à fuga de Liberdade, escravizada que decide escapar dos abusos da casa-grande. Vale ressaltar que, apesar da montagem optar por iniciar com o período colonial, esse trabalho não apresenta uma linearidade. Os personagens se utilizam de textos políticos, filosóficos e situações do cotidiano para desenvolver o enredo. São fragmentos de diferentes épocas, desde à escravidão, passando pela revolução industrial até desembocar nas amarras que nos prende nos dias atuais. Como o elenco deixa claro para o público, nada do que não tenhamos visto antes.

Entretanto, um conjunto de elementos cênicos tornam a experiência deste trabalho especial. A iluminação, por exemplo, é muito bem utilizada; o figurino simples, mas eficaz, em tons pasteis, que dialoga com a temática, composto por blusas e sapatos do dia a dia que vai sendo trocado/adaptado na frente do público, de acordo com as cenas, e junto com uma tinta passada pelo corpo dos atores e atrizes imprime uma sensação de sofrimento e de luta. A direção musical e desenho de som de Kleber Santana também cumpre o papel de potencializar a carga dramática das cenas. 

No Festival Palco Giratório, a apresentação foi no Teatro do Parque, com as cadeiras colocadas em cima do palco, num formato diferente do habitual, tanto do coletivo, como dos espetáculos que passaram por lá. 

A atuação do elenco também merece ser pontuada, uma vez que todos eles mantêm durante uma hora e meia de apresentação uma qualidade técnica, vocal e corporal que impressiona. São sete atores e atrizes contracenando, cada um ajudando o outro a brilhar em cena. Nesse sentido, o resta 1 consegue driblar o desafio de atuar no coletivo, trazendo para as cenas dinamicidade, cumplicidade, musicalidade, e mesmo neste último segmento de forma comedida, mas suficiente para dar o recado. 

Embora os assuntos trazidos para o palco sejam apresentados sem pretensão alguma de ser algo muito bem costurado – pelo menos dar a entender -, e está passível de improvisos, assistimos a um jogo teatral muito bem dirigido por Quiercles Santana e Analice Croccia. Existe um fio condutor, que são as urgências trazidas em cena envolta na dramaturgia, no qual casa muito bem com a bagagem do coletivo e as emoções ali expostas. Na mala que cada ator e atriz carrega consigo existe um pouco de nós. Existe um pouco dos refugiados, dos gaúchos e de tantos outros fatos e histórias que marcaram a nossa sociedade. 

A partir das encenações, assistimos a uma denúncia das fragilidades humanas. O açoite do racismo, que provoca inúmeras sequelas; a desigualdade social, o trabalho escravo, o abuso de autoridade por parte da polícia, o assédio, a solidão, o fugaz, entre outros assuntos urgentes. Alguém pra fugir comigo também fala de afeto, de lembranças, de se permitir, se encontrar, se perder, de precisar de uma mão estendida, de um abraço e de ter com quem contar na hora que a fuga é inevitável. É um trabalho atual, visceral e sensível. Talvez isso explique a grande procura que existe quando se está em temporada. Afinal, são 8 anos da montagem, sendo a primeira profissional do Resta 1, com 5 prêmios Apacepe conquistados, incluindo na categoria de melhor espetáculo adulto, e sempre arrastando um público saudoso e interessado na montagem do coletivo. 

De modo geral, foi lindo ver o Palco Giratório 2024 retomar ao Recife após 10 anos, com espetáculos plurais nas diversas linguagens artísticas e movimentando as artes cênicas na cidade. A participação de Alguém pra Fugir Comigo na programação foi um dos grandes acertos da curadoria. Vida longa ao coletivo e ao festival. Que venham mais temporadas para esse trabalho urgente e necessário, e que outros com tamanha intensidade e entrega sejam criados e apresentados ao público. 

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