Múltiplas Faces da Insensatez | Crítica do espetáculo Desatinos

por Vendo Teatro
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Foto: Thiago Farias Neves

Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021

 Conforme o psicanalista francês Jacques Lacan “[…] todo mundo é louco, ou seja, delirante” e essa loucura e/ou delírio, ainda conforme Lacan, significa uma “virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência”. Ou seja, conforme o psicanalista francês, podemos inferir que todo mundo é louco, pois em algum momento/ponto cada indivíduo se depara com uma brecha de escape da realidade que habita em si, conforme a sua essência e particularidades. 

Ainda sob o contexto de falta de tino, surge o monólogo “Desatinos”, produzido pela CIA Capela Alquímica e co-produzido pelo O Poste, com texto e encenação de Samuel Santos e atuação de Gerson Lobo. A obra fez parte da programação da 27ª edição do JGE (Janeiro de Grandes Espetáculos), mas ao contrário da maioria das produções artísticas do evento que foram de maneira OnLine, Desatinos tomou os palcos de maneira presencial, ainda que sob as medidas de distanciamento e de higiene contra o COVID-19.

Desatino, conforme  dicionário, indica: loucura; expressão de falta de juízo, de bom senso, de tino; disparate; ação cometida por uma pessoa insana, louca. Logo, o seu plural indica uma série de ações que correspondem aos significados listados acima. Mas não poderia haver momento mais oportuno para que essa peça ocorresse do que os dias atuais, completamente insanos. Distópicos.

Quando as luzes se apagaram, as cortinas abriram e o espetáculo artístico começou. De forma que no palco do Teatro de Santa Isabel, as faces da loucura ganharam um corpo que era personagem e narrador — Gerson Lobo —, o qual contou quatro histórias de quatro personagens que em determinado ponto fugiram de seus tinos e se abrigaram em suas insensatezes.

Um elemento que se faz muito significativo para que o desenvolver da história surja é a musicalidade presente na peça, pois ela influencia na fluidez da narrativa, de maneira que  há uma sincronia entre corpo, luzes, narrador, personagem e violoncelo. Na verdade, o violoncelo — sob o comando da musicista Rafaela Ferreira — é um co-narrador do monólogo e em partes se apresenta como um personagem também.

Além disso, a iluminação é outro ser de importância fundamental nas narrativas que se desenvolvem, pois há uma relação intrínseca entre o clima da cena que paira no ar e o que é proposto pelo corpo no palco. Assim, a iluminação, embora sem muitos efeitos exagerados ou demasiado elaborados, através de sua paleta de cor quente e intensa, transpassa a sensação óptica de intensidade, de forma que a frenesi da loucura penetra e transborda.

 E não menos importante, há o ator que oscila entre funções no palco, ora personagem, ora narrador. Por meio de sua interpretação vocal e corporal, o artista em seu momento sob o holofote desperta no público o máximo do imaginário, para que figurinos e cenários se transformem em algo mais plástico e palpável.

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
— Fernando Pessoa

Com isso, as quatro histórias propostas e narradas iniciam o seu desenvolver, uma em sequência da outra, de forma que a palavra “desatino” vai modificando seu significado e causa. Cada história é uma face da loucura e mil faces da humanidade, de maneira que desvela o bom e o horrendo no íntimo dos indivíduos e no escancarado da sociedade.

A primeira história é referente a uma criança piromaníaca, fascinada pelo fogo e por seu efeito “purificador” que desvela as formas e as leva ao pó, um estágio tão neutro e simples da matéria. Tal visão da criação piromaníaca poderia ser comparada a uma versão inversa da criação monoteísta, enquanto Deus faz os seres do pó/barro, a criança fascinada pelo fogo, em seu momento de deus da destruição e embebido por seu desatino monstruoso, faz uso do seu amado fogo leva alguns animais e a sua própria mãe ao estágio de pó.

Com isso, a primeira das narrativas perpassa o público de uma forma introdutória quanto ao campo das loucuras e dá margem para que os conceitos sejam expandidos nas próximas cenas. Em contrapartida, a ideia da primeira cena choca com as temáticas vindouras das outras cena, pois a figura de uma criança piromaníaca desperta reflexões sobre a  loucura do homem antes de ser contaminado pela sociedade, é uma loucura simples, pura e irremediável. 

Já a segunda das narrativas que surgiram no palco do Teatro de Santa Isabel foi a história do personagem Manuel, o filho de um alfaiate assumidamente gay com uma prostituta. Portanto, dentro do que infelizmente já se espera, a história de Manuel é condizente com a realidade, sendo marcada de agressões verbais e físicas — fruto dos estigmas patriarcais da sociedade —, pois “filho de gay, ou é, ou será”.

Manuel cresce e assim como seu pai, torna-se um alfaiate, porém impregnado de todos os estigmas e estereótipos que o cercavam, ele se tornara rancoroso, machista e misógino, mas mesmo assim se apaixona por uma linda mulher, Mariana. Dessa forma, envolto em sua paixão, ele entra em desatinos demasiados por Mariana e comete loucuras de amor por ela, até que um dia seu amor é correspondido. Contudo, quando Manuel conhece quem de fato é Mariana, ele descobre que o seu grande amor possuía, apesar de seu corpo feminino, um pênis entre suas pernas. O alfaiate entra em desespero, seu ódio e rancor sobem a cabeça, e quando menos se esperava, ele a beijou e naquele momento ele comete uma insensatez: ele matara um homem, matara a si mesmo. Ele matou a sua pior versão em ato de loucura e abraçou a quem amava.

Portanto, a segunda cena parece ser a que mais toca e impacta quem a vê, não pelo final ou recursos coreográficos presentes na encenação, mas pela forma como a narração é construída. A contraposição de ideias e a presença de uma realidade que cerca tantos, quando culminam na desconstrução da personagem alfaiate, gera uma sensação confortável e agradável de um final feliz, como um símbolo que o dramático entrega à realidade de que ainda há esperança.

A terceira das histórias também está cercada pela insensatez que, segundo a sociedade com suas línguas ferinas, é o amor. O terceiro momento narrativo conta a história de amor entre Antônio — um açougueiro —, e Nicinha — uma prostituta. Ambos do ramo da carne, mas de faces opostas da mesma moeda. Assim, conforme a realidade, dentro do universo da dramaturgia, a sociedade também era extremamente conservadora e contra a união de Antônio com uma “mulher da vida”. Porém o casal não se importa e segue sua vida de igual forma, contra tudo e todos, até que um dia Nicinha é encontrada morta por Antônio que por sua vez perde, junto ao amor de sua vida, o tino e comete uma ação bárbara contra os cidadãos da cidade, ao bom estilo da lei de Talião: olho por olho, dente por dente, carne por carne. 

Com isso, a terceira narrativa surge como um intermédio de uma loucura gerada pela caoticidade tóxica da sociedade e a possibilidade da instabilidade humana, à espreita de um momento de rompante. Mais interessante que a primeira cena e menos agradável que a segunda e quarta, a terceira das narrativas age como uma costura que interliga a insensatez das emoções, a perversidade humana e a caoticidade social.

Por fim, a última das histórias conta sobre a vida de uma pessoa que é filha de uma prostituta — que morreu no parto — e nasceu na hora da Ave Maria. Essa pessoa é adotada pelos membros do cabaré o qual sua mãe trabalhava e ali, dentro daquele ambiente, libertou-se de rótulos e moldes, assim como seu corpo que possuía as curvas femininas, mas entre suas pernas havia um pênis, seu nome: Mariana. Dentro do cabaré, a vida era uma, era livre, mas quando Mariana foi para a “liberdade” do mundo, sentiu-se presa, com medo de ser quem realmente era, até que encontrou alguém tão desajustado aos padrões quanto ela, resolveu se libertar das amarras da razão e moral conservadora, vivendo plena dentro de seus desatinos.

Assim, a teatralidade encerra com Mariana, passando a sensação de que um ciclo lógico entre as histórias foi fechado e simultaneamente tece suas curvas entre as múltiplas realidades da loucura, inclusive a qual vivemos. Além de que o último ato, digamos assim, gera um paralelismo entre as razões e os contextos por trás das faltas de tino apresentadas e que podem ser facilmente associadas ao real, principalmente porque a obra agiu como um simulacro do mundo. De forma que surge uma reflexão sobre o que de fato é ser racional e o que é viver alienado, pautado sobre pressupostos arcaicos e patriarcais pré-estabelecidos como verdades imutáveis. 

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