Menu de Quinta – Crítica de Ficções

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

19:30, quinta-feira, largo de um trabalho para ir para outro, pego uma moto, corto a cidade, uma confusão instaurada pelo Recife, o pior trânsito do Brasil; um burburinho na Rua do Hospício: o Parque continua a sua peleja de resistência na cidade. No palco, Vera Holtz vende ouro. Ouro! O que é ouro? Por que ela vende? Antes de qualquer resposta, vem um homem e carrega a placa, o ouro, a boneca, que descobrimos aí que não é Vera, e que ele faz questão de marcar no jeito de levar, que aquele corpo em cena é levemente leve, uma escultura de plástico. Começa-se um organicamente artificial caminho que a atriz se coloca para discutir sobre a vida, aguçando o público, que ri.

E já sintetizando o conflito existencial humano, do jeito que começa, segue o espetáculo “Ficções”, construído sob a leitura de “Sapiens, Uma Breve História da Humanidade”, um best-seller do escritor israelense Yuval Noah Harari. No livro, o autor pretende discutir sobre a existência humana através da nossa história e da nossa potência de construir histórias, narrativas, ficções. No espetáculo, idealizado por Felipe Heráclito Lima, tudo isso está posto, e ele nos traz com muita clareza o que se propõe: contar o livro e comunicar a mensagem de diversas formas, utilizando exemplos da vida de outros animais, nos horizontalizando em relação a tudo que vive nesse mundo, fazendo-nos pensar o que é ser humano, por que ser humano é “ter” direitos exclusivos e/ou próprios(?), o que é humanidade?. A obra é cheia de “aspas”, encontros e desencontros, a própria contradição que nos faz “humanos”.

De entrada, o cenário: uma pedra grande em desconstrução, uma moldura em brilhante cromo, e músicos, contra-regra cênicos, e luzes. O que se sobressai da cenografia é o bom uso, a grandiosidade de cada coisa, o desafio à gravidade. Este cenário realmente ajuda o espetáculo a elucidar a cena e contar essa vida proposta, proporcionando-nos sensíveis e boas sensações e reflexões; principalmente, questionamentos.

O texto, de Rodrigo Portella, é inteligente, tem um jogo de apreço e desapreço, de ser muito bom e ser muito pedante, enfim, o texto é também como a vida, em subidas e descidas, transformações e possibilidades de construções profundas e um besteirol sem muito sentido. É uma grande conversa da atriz consigo e conosco, e com seu marido, com o autor, com a história, a partir de uma voz infinita e “ciber-linguística”. Essas camadas surpreendentemente óbvias, essa “carnificina” da língua é justamente o que marca um ponto característico do texto e chega a mim com eloquência: caos belo e triste, e alegre também, características de um bom teatro pós-dramático.

O envolvimento da sonoplastia dentro do espetáculo é algo inegavelmente lindo, explorando nuances mais profundas, bem pensada e executada. A sonoplastia ganha corpo, voz e rosto com Federico Puppi, que divide o palco com Vera e faz da música no espetáculo algo vivaz e brincante, ao passo que carrega os tons dos sentimentos, da existência, da finitude e da infinitude também. A música é o esposo do alter ego da atriz, é um baile, um compasso.

O prato principal é a atriz, que é extravagante, uma presença espetacular, e me surpreende esse encontro. Me sinto Anton Ego provando Ratatouille, na animação homônima da Pixar (escrevo esse trecho em boa risada); mas a realidade é que eu não trazia muitas expectativas ao Parque nesta quinta-feira, mas, dentro do fluxo comum da semana, fui surpreendido, não pelo espetáculo exatamente — há coisas que não me surpreendem tanto: ou porque eu já fiz, ou porque eu já vi. Mas a atriz, a quem nunca havia visto no teatro, trouxe um equilíbrio entre acidezes e adocicados, um prato principal farto, que tem “Puch” e é surpreendente, mesmo, nesse jantar, nesta quinta.

Vi uma atuação quente, impetuosa, sólida, provocante, enérgica, viva. Entendendo também como é estar em cena, me treme o coração. O exercício de grandes artistas é a permanência do vigor, como o que permanece no corpo e na alma de Vera Holtz, e no jeito primoroso dela de contar histórias. Além de tudo o que a atriz leva para casa, ela ganha um admirador do bom trabalho artístico que desempenha.

Também, pudera! Vera é cria de Bibi Ferreira, alicerçou sua arte nos teatrões do Rio de Janeiro, na escola de teatro da Uni-Rio. Além do teatro, consagrou-se em grandes emissoras de televisão e no cinema. Uma atriz viva, que carrega uma posição potente de arte.

Já me sentia satisfeito ao fim de tudo. Depois dos aplausos, saí meio apressado, desviando filas e público. Uma chuva caindo do céu, encontro Paulo, que trabalha comigo aqui na VT, e de sobremesa a gente vai degustando e sentindo o que Vera Holtz proporciona em “Ficções”:

Um esquadro em brilhante cromo;
“O fim da boca é o cu”;
“O fim do cu é a boca”;
“Se o que chamamos de real é uma ficção, a nossa ficção é a realidade”;
Alguns desafios à gravidade, essa força da vida;
“Se tudo é ficção, nós podemos recriar”;
O cenário também é pretexto para nada;

A vida é uma pedra flutuante: uma gigantesca e sólida ficção.

Vendo Teatro – Incentivo Funcultura 2022/2023
Proponente, coordenadora e criadora de conteúdo: Aline Lima
Produção Executiva: Sabrina Pontual
Críticos teatrais: Luiz Diego Garcia
Cleyton Nóbrega
Lucas Oliveira
Gabrielle Pires
Coordenador crítico: Luiz Diego Garcia
Jornalista: Paulo Ricardo Mendes
Designer Gráfico: Allan Martins

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