Foto: Daniel Barboza
Por Luiz Diego Garcia
Recife, Maio de 2023
Em 2007 minha mãe e meu pai se separaram; eu tinha 13 anos. A narrativa da culpa cristã que pesa sobre a figura materna nesses momentos é clara e disseminada com muita facilidade, e sem nenhum filtro. Quando um casal se separa pensa-se que nem sempre há um culpado; mas uma culpada.
Mamãe foi mãe aos 21 anos de idade, há de ter vivido muito pouco em duas décadas. Nasci em 1992, e mamãe foi viver sua adolescência tardia aos 30/35, quando eu já era maiorzinho e não precisava tanto de cuidados tão urgentes. Saía com as amigas, dançava forró, ia a shows de sertanejo, se divertia como sabia, e como estava aprendendo a fazê-lo. Não havia negligência em experimentar o mundo, oras, havia, se muito, uma fome de vida, natural, inerente ao estar vivo. Olho para esses anos com o olhar judicioso de quem entende e acolhe a fluidez da existência no mundo. Papai não faz o mesmo, seu ego atrofia em culpa sibilante e sinuosa. Mamãe foi mal dita como foi Capitu.
O teatro, como expressão artística, tem o poder de transcender fronteiras temporais e promover diálogos entre épocas e realidades sociais díspares. Nesse contexto, o espetáculo “Eu Capitu” faz sua estreia na região nordeste do Brasil, na Caixa Cultural de Recife, trazendo consigo uma reflexão contemporânea sobre o machismo e o silenciamento feminino, a partir de uma leitura ousada e inovadora da obra de Machado de Assis.
Sob a autoria de Carla Faour e a direção de Miwa Yanagizawa, essa produção teatral singular dá voz às mulheres, costurando as linhas da realidade e da ficção, do presente e do passado, num embate delicado e poético contra um mundo de narrativas ainda profundamente masculinas. Após uma bem-sucedida estreia no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, o espetáculo se apresentou em Recife nos dias 19 e 20 de maio, às 19h, fazendo com clareza o seu mote de transpor o público com sua abordagem instigante.
“Eu Capitu” adota uma postura franca e contundente ao explorar questões relacionadas à família, relacionamentos e gênero. Escrito, produzido e realizado por uma equipe majoritariamente feminina, o espetáculo traz uma nova perspectiva sobre a personagem Capitu, imortalizada na obra-prima “Dom Casmurro” de Machado de Assis, e a insere em novas narrativas e perspectivas dentro do intricado tecido social dos dias atuais.
No palco, temos a presença marcante de mais mulheres, com Flávia Pyramo e Marina Provenzzano interpretando a história de Ana, uma adolescente diante dos dilemas e dores ainda tão comuns na dinâmica familiar brasileira, como os relacionamentos abusivos. Enquanto lida com o turbulento fim do casamento de seus pais, a jovem se envolve na leitura de “Dom Casmurro”, recomendado como atividade escolar.
À medida que mergulha na obra, buscando refúgio em cenários mais amenos que os de sua própria vida, Ana começa a misturar realidade e ficção. Ela passa a receber visitas de uma mulher misteriosa em seus sonhos-devaneios. Assim, desvendamos que a perspectiva da protagonista se torna o fio condutor da trama, à medida que ela transita da infância para a adolescência, um momento de extrema vulnerabilidade, em sua busca por compreender as escolhas de sua mãe, o significado de ser mulher e, especialmente, a própria obra de Machado de Assis.
A autora do espetáculo, Carla Faour, concede voz às mulheres, tanto às reais quanto às concebidas pelos escritores homens, em um confronto delicado e poético com um mundo de narrativas ainda dominado pelos homens, tanto nos espaços públicos de poder, produção e apreciação artística, quanto no âmbito privado e nas dinâmicas familiares que se transformam à luz de novas perspectivas sobre o amor, o poder e a liberdade. Com uma abordagem não realista desde o início, a peça busca tratar de temas complexos e tênues de forma doce e lúdica, por meio da criação de um universo simbólico e metafórico.
A direção sensível e precisa de Miwa Yanagizawa, construída a partir de um diálogo intenso com o elenco feminino, reforça o convite à reflexão e às transformações de gênero. O objetivo é instigar o olhar do público, convidando-o a imaginar outras possibilidades narrativas e a tomar consciência das questões por meio de diferentes perspectivas. O espetáculo não busca fornecer respostas definitivas, mas sim despertar a apreciação de fazer mais perguntas, abrindo espaço para uma cena menos linear e conclusiva, na qual o espectador se torna um colaborador ao dialogar com a obra utilizando sua observação, raciocínio, imaginação e compreensão, tornando-se também um intérprete ativo da experiência teatral.
Em sua inteireza ímpar em cena, a dupla de atrizes estão estonteantes em suas performances pouco óbvias e de extrema urgência; e é válido salientar a vivacidade espontânea com a qual Marina Provenzzano dá vida a Ana de 11 anos. Suas mãos em cena estão um show à parte, fugazes e hipnóticas; ressalto aqui o momento em que, já pelo fim do espetáculo, Ana pede que a mãe se sente à uma cadeira ao seu lado para lhe contar o que realmente havia acontecido meses antes entre o casal, e as mãos de Marina Provenzzano escapolem o plano terreno e se transfiguram em palavras, em gesto completo, em ação física divina. É sim da ordem do divino presenciar esse tipo de manifestação artística.
Através de uma interpretação minuciosa e de uma encenação cuidadosamente orquestrada, somos conduzidos por um enredo permeado de simbolismos e metáforas da ordem do cotidiano fantástico. O humor ácido entrelaça-se com a gravidade do tema, questionando as normas sociais e as expectativas impostas às mulheres nessa odisseia teatral. Fui levado a 2007, questionei a Capitu-Mãe que tive, e nessa desventura doméstica e emocional, o espetáculo desafia-nos a esticar o pensamento até o limite da convenção masculina, extrapolá-la e sensibilizá-la.