Levítico 18:6 | Crítica de Perdoa-me Por Me Traíres

por Vendo Teatro
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Foto: Lilianne Guerra

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Setembro de 2021

Choro. Choro muito, eu sempre choro, eu me verto em lágrimas quando me emociono. Mais de um ano e meio sem pisar num teatro, sem ver um espetáculo; a experiência deságua pelos meus olhos assim que a cortina abre. Quão mais quando a cortina fecha. Ver a emoção no rosto do grupo ao fim do espetáculo foi soberbo. Respeitando as normas de distanciamento e executando um trabalho de divulgação louvável, a Cobogó das Artes traz ao palco do Teatro Barreto Júnior Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Rodrigues, em meio a uma paulatina reabertura dos espaços culturais da cidade.

A obra de Nelson Rodrigues é antes de tudo palavra. A ação de suas rubricas e suas indicações de cena, ou mesmo suas interferências encenadoras no texto, não estão para o texto Rodriguiano como está a palavra que é dita por suas personagens.  Logo, uma leitura neutra de tal texto, sobre um tablado vazio, já seria demasiado impactante, visto que o texto carrega por si só a genialidade de um dos maiores autores do teatro mundial. A montagem de Perdoa-me Por Me Traíres dirigida por Adriano Portela, contando com a assistência de direção de Polyana Luna e Rodrigo Hermínio, faz uso de sábias e enxutas escolhas na sua encenação, de modo a dar vazão ao canônico texto, mas, como toda personagem do universo de Nelson, peca enquanto goza. 

Num design de produção diminuto, mas que nos esboça um flerte com a ambientação do Rio de Janeiro da década de 1950, o palco — e figurinos, maquiagens, e cenografia — se reveste de poucos elementos; três biombos, cadeiras, panos, mesinhas e um telefone. Tal brevidade visual auxilia a montagem a seguir o propósito mínimo de dar espaço para a palavra tomar conta.

Então o espetáculo conta a história de Glorinha, órfã criada pelos tios Raul e Odete, que vai ao bordel de Madame Luba escondida do tio Raul a convite de sua amiga Nair. Em sua amoralidade social, a dramaturgia de Perdoa-me… é transportada para o palco praticamente na íntegra, com mínimas alterações, os termos usados são os de outrora, as referências também, as palavras, no entanto, custam a parecerem realistas na boca do grupo em 2021 — mesmo a sordidez psicológica humana abordada por Nelson estando presente e rondando a montagem como as personagens que nunca saem de cena. Aqui essa escolha da encenação de manter as personagens presas vagando pelo palco, entrega movimento e corpo à peça, mas por vezes distrai quando o foco da ação não é bem delimitado.

O texto de Nelson não poupa críticas, da classe política à pequena burguesia temulenta de falsos valores cristãos, as palavras rasgam psico-politicagens imundas aos olhos de quem os tiver. Em determinado momento, a personagem assistente do bordel, Pola Negri, vivida por um extrovertido Matheus Campos, responde à Glorinha que indaga sobre a polícia ir até lá prender todos, e diz: “A polícia vai prender um deputado? Com que roupa?”. Êxito absoluto a escolha de tal dramaturgia e de fato não falta coragem ao elenco, composto por talentos amadores e profissionais da área; a matriz de interpretação escolhe veias real-naturalistas como bússola, mas oscila em sua credibilidade ao longo do trabalho. As palavras (sempre elas) são difíceis aqui, imensas, grandes demais, pequenas, mínimas, espalhafatosas e secas, sombrias, ébrias, mas sobretudo, complexas. 

“Porque há o direito ao grito, então eu grito”, diz Clarice Lispector, em A Hora da Estrela. Escuta-se muito pouco quando há apenas o grito como solução para extravasar as personas Rodriguianas. Há por vezes certa monotonia por parte do elenco, faltam nuances às suas escolhas de materialização desse real-naturalismo, ora está tudo muito estridente e as personagens estão em um espasmo gritado demonstrando seus descontroles pouco convincentes, quase beirando o caricatural; ora uma apatia toma conta das ações e aqui e ali se perde o tesão tão intrínseco no texto de Perdoa-me…. No todo, uma falta de ritmo e intimidade com o texto parecem ditar o jogo cênico proposto; pois quando o espetáculo termina, o elenco, ao recepcionar o público, vibra em comemoração de tal maneira que a falta desse vigor em cena é sentida. 

Mesmo com o texto na ponta da língua, o grupo sofre com ápices fervorosos e diálogos mais mornos, contudo, a instabilidade da montagem tem em seu Tio Raul seu grande trunfo; uma das personagens mais complexas do universo Rodriguiano, Tio Raul é uma profunda alegoria de masculidades fracionadas em suas fantasias. O ator Laerte Augusto entrega uma performance fascinante e intrincada, há uma calma detestável na forma como o ator nos apresenta sua persona e mantém assim toda a trama gravitando ao seu redor. Seus olhos se esbugalham e suas mãos se manifestam exuberantemente na medida em que o texto avança; trabalho sofisticado. A montagem também conta com algumas ações físicas memoráveis, como quando o Médico, interpretado por Micael Alexandre, cospe caroços de laranja pelo palco e deixa claro que, em dado momento, ali quem manda é ele; ou no nervosismo observador da Glorinha, interpretada por Polyana Luna, ao constatar que, num flashback, o passado de seus pais não foi exatamente como lhe era sabido; e também quando, neste mesmo flashback, vemos Gilberto, aqui Matheus Stamford, desenhando um contorno de cena caprichado aos pés de sua esposa, percebemos o brilho do trabalho e de como a montagem requer a robustez da prática e da repetição. 

Numa lamentável inserção final, a nota ao término da montagem de Perdoa-me… não é das mais agradáveis; numa tentativa frouxa de adicionar um possível final alternativo para a trama, a montagem perde muito de sua linguagem estabelecida com uma coreografia executada com estranheza pelo elenco, que mesmo esforçado, não convence. Em suma, Perdoa-me Por Me Traíres entrega uma corajosa execução que, mesmo ainda titubeante para encontrar seu tom, se mostra contundente. Sempre valioso ouvir a palavra Rodriguiana. O teatro vive muitíssimo.

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