Geoponia | Crítica de “A Palavra Progresso na Boca da Minha Mãe Soava Terrivelmente Falsa”

por Vendo Teatro
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Por Luiz Diego Garcia
Recife, Agosto de 2019
Foto: Anamaria Sobral

Geoponia

Cordas e calçados embrulham o espaço. Um cheiro Brechtiano ecoa nas janelas vazadas. Está posta a energia de um trabalho denso: “A Palavra Progresso na Boca da Minha Mãe Soava Terrivelmente Falsa” é a conclusão do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Piedade que adapta o texto do romeno Matéi Visniec para os palcos recifenses. Com encenação e adaptação de texto assinadas em parceira por Anamaria Sobral e Sandra Possani os grunhidos de um tempo fragmentado chegam trazidos pela poeira e pólvora nos ventos que cruzam as fronteiras. Numa Europa oriental pós-guerra ou no bairro ao lado, os conflitos de um povo expatriado se enlaçam apertados como quem tem cadarços amarrando os pescoços; num mote que abrange uma família, mortos de guerra, prostitutas, terra e ossos.

A imagem vista de “A Palavra Progresso…” é precisa e não menos potente pela sua cautela. Fábio Caio concebe cenografia e figurino, elementos que em conjunto dão à mise-en-scène um tom terroso a mais: pesares poéticos despencam do alto para deixar o solo mais fértil. Experimentando pequenas distorções, especialmente no figurino, o espetáculo é deveras contente nas escolhas visuais. Entrementes, titubeia em seu ritmo quando se alonga debruçado sobre a tumba de uma cena ou outra ou quando emula um humor sem tônus, mas é no contraste arrítmico que talvez a montagem deleite o público. Entregando dois núcleos de histórias entremeadas, mas aparentemente não paralelas, numa experiência que vai do micro intrapessoal ao macro político patriota, “A Palavra Progresso…” ganha mais cores nos momentos em que investe nos conflitos intrapessoais de suas personagens; e sente o peso do passar do tempo quando é regada por uma sonoplastia elíptica funcional, e também incômoda, ou mesmo quando delineia personagens cartunescas num bordel perdido no mundo. E se os ruídos causam desconforto, a trilha também assinada por Miguel Mendes, envolve as personagens e tem seu ápice de delicadeza em um enterrar catártico desenhado pelos pés da atriz Sue Ramos.

O Curso de Interpretação Para Teatro prima, em suas diretrizes, por um trabalho que dê autonomia de criação aos seus alunos-atores e às suas alunas-atrizes, desta forma o elenco expõe neste trabalho os desafios de transcorrer por tanto tempo numa montagem que exige contenção e explosão desde o frame fotográfico do início. Transitando por momentos de inteireza e fragilidade, o grupo oscila nos contrastes de suas performances. Dentre os recém-formados vale destacar o trabalho íntimo e inquietante de Larissa Alves e Luana Rabelo. Alves tem em sua performance uma rígida dor unida a um núcleo amoroso líquido, uma mãe-antígona que soterra o palco com sua intensidade silenciosa. Ao passo que Rabelo percorre pequenos trajetos prolongados por um caminhar do Noh japonês, sua entrega parece estar associada a essas bases interpretativas: suas contenções bombardeiam a cena com uma voz que, quando cantada – principalmente –, estilhaça nuances riquíssimas de sua personagem.

Num arremate final que joga com alegorias tanto democrático-capitalistas quanto sensibilidades inter e intrapessoais, “A Palavra Progresso…” deixa marcada sua passagem questionadora pelo tempo-espaço inquieto de forma condizente e responsável, fazendo aqui, da arte cênica, geoponia.

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