Foto: Iñaki Porto e Oskar Montero Llanos
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021
o céu na tua frente
o chão sob teus pés
o sol iluminando tuas sandálias
e tu não enxergas outros
caminhos
— Miró da Muribeca
É engraçado pensar que sempre estamos um passo atrás daquilo que seremos e um passo à frente do que já fomos. Muitas vezes olhamos para frente e, como qualquer outra pessoa, conjecturamos o futuro, mas também olhamos para trás e às vezes não enxergamos bem de onde verdadeiramente viemos. Onde estão nossas verdadeiras raízes? Como posso de fato saber para onde vou se nem sequer sei de onde vim? Um andar cego, mesmo que para frente, parece ser um estar estagnado, ou pior, um estar manipulado.
E é sobre isso que a apresentação artística solo de dança “À Un Endroit du Début”, com Germaine Acogny, fala e traz em uma de suas tantas camadas. O solo de dança, o qual compõe a grade de espetáculos da vigésima sétima edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, está arraigado à ideia do conhecer, de fato, as raízes às quais pertencemos.
Compondo um grupo de espetáculos apresentados ainda em meio a pandemia, À Un Endroit du Début se apresenta dentro dos moldes artísticos que possibilitam uma maior segurança para artista e público. É uma apresentação gravada que explora recursos de câmera para que os mais diversos ângulos das cenas, em palco, sejam captados. Nota-se um esforço para gerar a sensação de “estar no teatro”, mas ela não acontece, porque não estamos no teatro. A câmera não atua como um ser pertencente ao que se passa no palco, ela é artificial, como um narrador que escolhe uma história para narrar, mas conta apenas os fatos que lhe interessam e conforme a sua visão de como os fatos da história se sucedem.
Entretanto, simultaneamente ao desconforto presente, há uma sensação de “eureca” que paira no ar, ao experimentar o gravado e presenciar como o físico se torna virtual e o virtual se torna virtualíssimo. Porque dentro desse espetáculo de dança, visto de casa, pode-se sentir como o espaço tão caloroso que é o teatro se torna algo tão distante; e o virtual, usado pelos recursos multimídia, projetados nas cortinas, se tornam mais que distantes, pois o que já seria distante, agora é completamente intangível, uma gravação projetada dentro de uma gravação. O mundo, nesses momentos, é uma tela dentro de uma tela e não consigo contar quantas paredes existem entre público e esse recurso do espetáculo, mas sei que são muito mais que quatro.
Outro elemento que possa distanciar um pouco o público do espetáculo é a ausência das legendas, pois a performance de dança, embora conte com os elementos da música e da própria dança, também conta com dramatizações da solista e textos exibidos nas cortinas. Até aí tudo bem, o grandíssimo problema é o idioma em que as dramatizações e textos estão inseridos, a língua francesa. Dessa forma, o espetáculo peca pela ausência do recurso — de acessibilidade — de legenda.
Contudo, a obra autobiográfica de Germaine Acogny não deixa a desejar em sua significância e relevância para a atualidade e as mazelas que a cercam. Porque, através do biográfico convertido em arte, é possível enxergar que há um mundo para além da bolha que vivemos e ele está tão doente quanto o presente dentro de nossas bolhas sociais ou mais.
“Esperamos dar o exemplo de um bom lar cristão. Devemos servir como cobaias chamadas a serem assimiladas pelos europeus. Fazer como o homem branco que era um sinal de civilização. Havíamos conseguido nos despersonalizar: nossos costumes ancestrais pareciam-nos ridículos.”
— Acogny (tradução nossa)
Nous espérons donner l’exemple d’un bon ménage chrétien. Nous devons servir de cobayes appelés à s’assimiler aux Européens. Faire comme le Blanc contituait un signe de civilisation. Nous étions arrivés à nous dépersonnaliser: nos coutumes ancestrales nous paraissaient ridicules.
(texto original)
O título “À Un Endroit du Début” significa “Em Um Lugar do Início”e se fizermos uma comparação com a pauta que o espetáculo traz, que é justamente a valorização pelas raízes africanas, é possível depreender que as nossas raízes estão de fato em algum lugar, mas mais que isso, há a necessidade de encontrá-las, pois vivemos em um mundo o qual busca absorver e se apropriar de tudo e todos, de forma que gere um sistema hegemônico e manipulador. Assim, é mais que crucial que se encontre onde se está preso e que haja a valorização dessa raiz, para que não haja possibilidade futura de que se entre em um ciclo de ódio e desvalorização do não-padrão, não-padrão esse que, na verdade, o próprio indivíduo está inserido.
Dessa forma, o espetáculo de dança evoca em suas coreografias combinadas com o recurso musical — músicas aparentemente com vínculos à musicalidade de matriz africana e a aparição de um trecho da música “Hurt” do Johnny Cash —, um elemento de ancestralidade que é representado por movimentos simples, circulares e predominantes nas extremidades do corpo teso, mas dançante, presente no palco. Assim, os movimentos coreográficos parecem circunscrever um elo entre chão e corpo; entre chão, corpo e coração; entre chão, corpo, coração e mente. Os movimentos demonstram, em uma de suas camadas, um eterno elo entre o indivíduo e o chão — o lugar onde tocamos primeiramente a planta de nossos pés — e nos firmamos para aceitar posicionamentos, tomar posicionamentos e ir de encontro com outros posicionamentos.
O espetáculo “Em Um Lugar do Início”, através de suas tantas camadas, tece uma crítica e um relato aos padrões hegemônicos existentes dentro de uma sociedade mais arcaica, porém que perduram na sociedade atual e dessa maneira machucam o corpo, alma, mente e cultura de um povo inteiro que, por muitas vezes, é induzido a se auto-demonizar devido a padrões estabelecidos por status quo, promovidos por uma cultura eurocêntrica/”american dream cêntrica”. E a partir de ideais hegemônicos supervalorizados, diversos indivíduos, todo milésimo de segundo, são marginalizados e vítimas de preconceitos velados e não velados.
Assim, a obra artística solo de dança, emerge no palco como um grito da arte, que dessa vez atravessa o Atlântico, para tentar abrir os olhos de uma espécie inteira que se rende a padrões arcaicos pré-estabelecidos centenas de anos atrás e alicerçados em mentiras ilógicas. A obra de Acogny vem à luz como uma voz francesa, negra e feminina, falando das muitas mãos racistas que tentam silenciar a sua negritude e cortar suas raízes africanas, lindas e plenas. É possível até estabelecer um comparativo com a realidade presente no Brasil, na verdade, é possível trazer essa pauta que Acogny levanta e observar como essa mesma mazela, presente em seu espetáculo, faz-se presente no mundo inteiro, porque a sociedade, em um todo, simplesmente se esqueceu de onde veio, e não sabe para onde vai.