Extra, extra! | Crítica de O beijo no asfalto

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Recife, Janeiro de 2020
Por Ananda Neres

Menos é mais (Mies van der Rohe)

Extra, extra!

Praça do Diário. 5h da tarde. Em meio à confusão da cidade, um atropelamento deixa um homem na pista à beira da morte. Outro homem desconhecido vai socorrê-lo e atende a seu último pedido: um beijo. Eis a situação que desenrola a trama de “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, presente na programação do 26° Janeiro de Grandes Espetáculos, com montagem culminante do curso teatral A construção do ator. Adaptado e dirigido por Emmanuel Matheus, o polêmico texto volta aos palcos recifenses.

A cena acima comentada inicia o espetáculo, e, nesta montagem, adota o gênero musical. O teatro musical vem ganhando espaço em nossa capital, mas ainda há muito para caminhar tecnicamente, seja na técnica do artista como na montagem. Em “O beijo no asfalto”, a ausência de microfones no palco impossibilitou a plateia de compreender o que estava sendo cantado. A voz chegava parcamente às cadeiras e, em alguns momentos, era completamente abafada pela parte instrumental. Dessa forma, o entendimento do início da peça é inteiramente comprometido. Em outros momentos dessa natureza, o problema de compreensão também se repetia. Ademais, as cenas musicais eram iniciadas de forma abrupta, causando estranhamento à audiência e quebra do ritmo construído, como é o caso da cena em que Selminha (Nathália Lins) se encontra com o delegado Cunha (Flávia Michaello) e com Amado Ribeiro (Victor Calasans).

O referido beijo de compaixão é visto por Amado Ribeiro (Victor Calasans), jornalista sensacionalista que em busca de vender jornais recria e modifica a cena a seu bel prazer. Alicerçadas no preconceito do povo, as falsas notícias se espalham e repercutem negativamente na vida de Arandir, que tem a heterossexualidade posta em jogo, e de seus familiares. Este jornalista, interpretado por Calasans, é responsável pelos momentos cômicos da apresentação, como também, por uma das poucas atuações críveis do espetáculo. Mesmo sendo um senhor performado por um jovem, a construção da partitura vocal e corporal convencem e não são abandonadas durante o desenvolver da ação.

Apesar de escrito em 1960, o texto de Nelson Rodrigues dialoga com a nossa atualidade em que o preconceito e a falsa moral fortalecem a disseminação de notícias falsas e ceifam vidas inocentes. Seja para lucrar ou para eleger presidentes ilegítimos, a mídia continua sendo guiada por interesses específicos e operando em favor desses interesses. Na peça, ao ser levantada a possibilidade de Arandir ser homossexual, a homofobia daqueles que o cercam o transforma de um trabalhador homem de família no pior dos seres viventes.

Em cena, atores em demasia. São eles personagens, contrarregras e figurantes. Parece haver poucos personagens para tantos elementos. Uma das soluções, aparentemente, foi revezar o atormentado protagonista entre um ator e duas atrizes simultaneamente, o que, a princípio, é confuso. E, no desenvolver da narrativa, apesar da movimentação do trio ser bem coreografada, a escolha mostra-se pouco convincente pelas divergências na interpretação. Em diversos momentos duas das faces de Arandir cobriam o rosto ou olhavam constantemente para o chão, negando ao público contemplar suas expressões e criar empatia à situação; era notória a presença de um Arandir principal ou “verdadeiro”, aquele encarnado por Dante Borba. Este entregava uma interpretação coerente a si própria, mais enxuta e madura, contrastando com a voz vacilante de suas colegas.

A materialidade do jornal é o conceito que guia a construção visual da peça, presente nas roupas, no cenário e na mão dos atores que compunham o fundo de cena. Os intérpretes que não participavam de determinada cena ficavam imóveis em diferentes níveis no fundo do palco lendo jornal. Composição que reforça o poder desta mídia no enredo. Na sequência, a cada cena finalizada, os atores que compunham o fundo da cena desfaziam-se dos jornais que liam largando-os no chão. No decorrer da apresentação, o amontoado dos papeis no palco vai gradativamente espelhando a confusão da trama. Todavia, os jornais somados ao excesso de atores e à forte saturação da luz resultam numa imagem poluída e tumultuada.

A montagem d’A construção do ator parece ter muitas ideias e pouca ordem. O excesso de elementos, a indecisão musical e uma iluminação visualmente desconfortável na plateia do início ao fim da obra são alguns dos elementos que tornam a experiência desagradável. Com escolhas cênicas adversas e atuações pouco convincentes, “O beijo no asfalto” torna-se cansativo até em seus momentos de reviravolta.

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