Foto: Toni Rodrigues
Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021
Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva.
Caio Fernando Abreu
Extra! Extra! Em SP, LGBT negro é agredido por três homens; Mulher trans é encontrada morta após relatar ameaças; Homem é preso por estuprar lésbica de 17 anos para ‘curar’ sexualidade da vítima; Homem é impedido de entrar em mercado por usar short curto; Jovem é baleado durante assalto em Rio Branco: “Ele disse que tinha raiva de homossexual”. Lendo essas manchetes de notícias, sabe o que elas têm em comum? Todas escancaram a cruel realidade da população brasileira LGBTQIA +; reflexo de um país que mais mata a população trans no mundo e que diariamente faz novas vítimas por causa da homofobia. Até quando isso vai acontecer? Quais as consequências provocadas por essa agressão? Quantas feridas um corpo é capaz de suportar? Will I survive? Quem sabe? É certo que diante de toda essa violência, no mínimo o que fica é uma cicatriz.
É sobre essas incertezas e marcas que não cessam, pois permanecem fincadas na alma, que trata a peça “Cicatriz”, da TR Produções, que teve sua gravação exibida online no Festival Janeiro Sem Censura 2021. Com direção de Antônio Rodrigues, da Cênicas Cia. de Repertório, a história se passa em diferentes cenários e épocas, mas se apresenta de forma não-linear, pois os fatos não obedecem uma ordem cronológica e nem um único sentido, pelo contrário, são finais diferentes para cada trama.
Nos primeiros momentos da peça se escuta os atores e atrizes, enquanto vão surgindo no palco pouco a pouco, recitando os seguintes versos: Uma foto, uma foto/ Estampada numa grande avenida/ Uma foto, uma foto/ Publicada no jornal pela manhã, que pertencem a música “Não recomendado” do trio de nome homônimo. A canção-protesto que retrata a censura, opressão e a violência ao mesmo tempo que canta sobre a liberdade, dá o tom ao espetáculo, e as situações vistas posteriormente nos remetem a essas temáticas.
Os 11 atores e atrizes do elenco revezam entre cenas para contar os acontecimentos acometidos pelos LGBTQIA+, alguns casos frutos de experiências pessoais, outros, baseados em referências do trabalho do dramaturgo Caio Fernando Abreu. Inclusive, essas influências ficam evidentes também em determinados momentos do texto performativo, quando narra-se do mesmo modo que as pérolas literárias do autor, com bastante detalhes ao contar os fatos e de forma erotizada.
Em uma live realizada no instagram do grupo Agridoce, responsáveis pelo festival Janeiro Sem Censura, os integrantes da montagem revelaram detalhes sobre o processo de criação. Depois de conhecer o percurso que fizeram até a execução dessa peça, uma das coisas que mais chamou a atenção foi a forma como encararam todas aquelas cicatrizes, ou seja, a grandeza e beleza de usar tudo aquilo que já fez mal um dia e transformar em arte; a potência de exorcizar os traumas no tablado.
As cenas são executadas de forma sensível, bem-humorada e poética, mas sem deixar de tocar na ferida. Cicatriz é contemporâneo e alguns personagens nos cativam trazendo na dramaturgia uma linguagem coloquial e divertida. O cenário quase não existe, o figurino dos personagens apesar de composto por uma vestimenta preta, bem simples e discreta, é acompanhado de um salto alto e uma maquiagem bem colorida, mas o foco ali parece ser na verdade as emoções dos atores. Entretanto, o trabalho como um todo talvez peque por ser longo demais, provocando momentos mais mornos em alguns episódios.
Além de assistir a montagem através de uma tela de celular ou computador, a disposição do palco italiano no primeiro momento parece potencializar ainda mais a distância existente entre o público e atores e atrizes, mas é justamente a forma cativante como exploram as situações, passeando pelo drama e a comédia, que faz com que exista uma conexão com aquelas vivências. Infelizmente, a dor é palpável, porque todos nós conhecemos alguém ou já escutamos falar de pessoas que foram violentadas por causa da sua sexualidade. Nesse contexto, o espetáculo contribui para suscitar reflexões como: Porque é tão difícil respeitar alguém que tem uma orientação sexual/gênero que foge da heteronormatividade/binarismo? Afinal, por que esse tema incomoda tanto?
Certa vez o educador Paulo Freire afirmou que “Ninguém vive bem sua sexualidade numa sociedade tão restrita, hipócrita e falseadora de valores”, e isso fica evidente quando paramos para observar, por exemplo, uma cena baseada no conto Aqueles Dois, de Caio Fernando de Abreu, na qual os personagens Raul e Saul, são amigos e colegas de trabalho que encontram nas suas vivências elos que os unem, como as decepções amorosas e as frustrações da vida. Entretanto, de forma sutil, essa relação vai se estreitando, de modo que tanto na obra quanto na peça sugere uma relação homoafetiva entre os dois. Mas, com o intuito de não provocar nenhum “mal-entedido”, por causa dos tabus ligados à sexualidade, eles tendem a esconder os sentimentos que guardam pelo outro.
A marginalização da relação homoafetiva vivenciada pelos militares também é abordada no espetáculo, no qual, mostra um sargento tendo relações com um jovem num prostíbulo. A figura desse militar pertubado por todos os preconceitos impostos pela sociedade, que são potencializados pelo ambiente hostil do quartel, aliado a não aceitação da sua sexualidade, repercute na brutalidade ao se relacionar com o outro homem.
Além dessa situação, é possível perceber a figura da cafetina associada a uma personagem transexual, mostrando a realidade e a relação dessa população com o universo da prostituição, além da exposição/violência que esses corpos estão sujeitos. Muitas vezes esse caminho, ainda hoje, acaba sendo a única opção de sobrevivência, já que as oportunidades de emprego formal são negadas.
A relação homoafetiva entre pretos e gay afeminados também é trazida ao palco, sendo explorada numa espécie de esquete, cujo personagem traz relatos de homofobia e racismo, inclusive, dentro do próprio meio LGBTQIA+. O texto também perpassa a falta de representação desses sujeitos nos meios de comunicação e o estereótipo do gay padrão, quando em um dado momento chega até afirmar: “É muito fácil sentir tesão por padrãozinho”, com o intuito de relatar a ausência de afeto quando o sujeito apresenta traços de feminilidade, implicando na desvalorização da identidade masculina e no lugar marginalizado que sobra para esses corpos. “É a realidade da bicha preta, se relacionar em banheiros, é não ter nada de real fora dali”, lamenta o personagem.
É nessas horas que a cicatriz dessa discriminação e violência aparecem e as marcas são latentes, refletindo assim no jornal publicado pela manhã, como diz a canção e nas manchetes citadas no início desse texto. A consequência dos discursos e comportamentos descritos acima, assim como das outras situações retratadas ao longo do espetáculo são os números alarmantes de crimes de ódio contra essa população. De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) a cada 19 horas um gay é morto ou se suicida no nosso país. Segundo os dados da Transgeder Europe, somos a nação que mais mata LGBTQIA+ no mundo. Para se ter uma ideia, entre 1º de janeiro a 30 de setembro de 2018, 271 pessoas transgêneras foram mortas em 72 países. Desses, 125 foram só no Brasil.
Mas, se de um lado Cicatriz provoca e expõe essa realidade obscura e triste que atinge essa minoria, por outro ângulo é possível mergulhar também em relatos sobre o amor, afeto e liberdade. Diante disso, o espetáculo também sugere, por meio das histórias, um convite para a empatia, o respeito ao próximo e a importância de estar bem consigo mesmo, sabendo quem, de fato, você é. Certo de que, se ainda falta muito para mudar a triste realidade da população LGBTQIA+, que comecemos essa mudança por meio da discussão e reflexão que o espetáculo propõe.
Adoro esse espetáculo! Muito emocionante!! :’)