Foto: Divulgação
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2022
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”
— Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
Dentre as tantas perspectivas apontadas no dicionário para a palavra “memória”, destaca-se uma em particular: “faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos”. Por esse sentido, se seguirmos a concepção apontada conforme o pai dos curiosos e fizermos uma pequena reflexão, a memória seria, em síntese, o bem mais precioso que um ser humano possui.
Seria por meio dessa capacidade de armazenar e catalogar determinados fatos experimentados ou estudados que o ser humano sintetiza sua identidade particular e social. Por essa razão, entende-se o gatilho chave por trás da obra do brilhantíssimo Machado de Assis, de maneira que é nítida a necessidade do autor defunto, ou melhor, defunto autor — Brás Cubas — em contar sobre suas vivências, afinal, talvez até os mortos sintam a necessidade de entender quem são, ainda que sua existência pertença ao não palpável e provável.
Seguindo um caminho inicialmente similar aos inícios da obra de Machado, em apresentação para a vigésima oitava edição do Janeiro de Grandes espetáculos,houve a reprodução da obra rodriguiana, Valsa nº 6. O único monólogo produzido pelo autor pernambucano com tendenciosidade carioca, Nelson Rodrigues, ganhou vida nos palcos do Teatro de Santa Isabel, sob a direção de Claudio Torres Gonzaga e a atuação de Luisa Thiré.
O texto traz em seu enredo a história de uma narradora quase-defunta, ou melhor, uma quase-defunta narradora, Sônia, que em seus 15 anos foi assassinada inesperadamente, enquanto tocava a Valsa nº 6, de Chopin. A trama rodriguiana se desenvolve através do não-espaço que habita a consciência desvanecendo de uma adolescente apunhalada pelas costas. Entre o choque do iminente fim e o instinto de tudo que é vivo se afastar da morte, a protagonista, durante dois atos, procura montar o dificílimo quebra-cabeças capaz de revelar quem ela é e o que a levou ao súbito fim.
Seguindo a perspectiva rodriguiana, alguns elementos são marcantes na obra, de forma que qualquer conhecedor mínimo de Nelson Rodrigues, ao assistir um pouco da obra, diria com firmeza: “Isso é coisa de Nelson. Batata que é!”. Isso significa, é claro, que algumas temáticas são tangenciadas ao decorrer da trama, como: a loucura, a traição, a descoberta dos desejos sexuais, a tendenciosidade positivista nas visões particulares das personagens masculinas sobre o mundo e delineados caricatos de uma sociedade regida pelo caótico patriarcado.
Porém, um elemento nessa obra se sobressai aos demais: é um monólogo. De forma que não há outros atores circulando pelo espaço cênico, nem o famoso que habita nas demais obras rodriguianas, o “escada”, para garantir um momento de sobressalto da protagonista ou de maior tensão. Toda a atenção do público para o enredo e suas nuances dependem de um único elemento, a atriz solo no palco.
Para o alívio geral, a atriz Luisa Thiré mais que empenhou seus estudos no monólogo do Anjo Pornográfico, texto e atriz eram um só no palco e estavam explícitas as nuances entre a transição das personagens que pairavam as lembranças confusas de Sônia e a própria Sônia. A montagem, portanto, ainda que difícil, prendeu os olhos irrequietos da plateia e forçou os sempre inconvenientes flashes das câmeras a cessarem.
Além disso, o figurino elaborado Teca Fichinski somados à direção de movimento de Kika Freire e a iluminação de Luís Paulo Neném atuam como elementos coesivos para a imersão do não-espaço criado pelo roteiro de Nelson. Esses recursos — figurino, movimento e luz — somados à mixagem de som da valsa nº 6, por vezes, agiram como suportes interpretativos para atuação de Thiré, ao conferirem uma reafirmação dos planos em que a personagem está vagando — delírio, loucura e memória — e uma falsa quebra da quarta parede.
Em uma realidade exaustiva, pós-pandêmica e rendida às farsas comerciais que circundam a terceira década dos anos dois mil, a encenação de Nelson é atemporal, ainda que um pouco arcaica para os olhos do crítico que vos escreve, e definitivamente viva, sob a atuação apaixonante de Thiré. Ao final, aplausos, suspiros de alívio por sair do sufocante e hermético universo rodriguiano e a felicidade em ver a satisfação de uma artista ao fazer seu trabalho no lugar de direito: o palco presencial.