Foto: Divulgação
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Outubro de 2021
Sempre, ou quase sempre, que contemplamos uma expressão artística, acabamos entrando em uma máquina do tempo e cruzamos as eras, passeando entre tempos mais próximos ao nosso e tempos mais longínquos como os daqueles que viveram no período clássico. Essa viagem ocorre pois o que há de moderno bebe completamente de um movimento anterior, que bebeu do outro movimento anterior… até chegar na matriz, nas expressões artísticas mais antigas.
Por esse viés, na primeira terça-feira do mês de outubro de 2021, 05/10/2021, fui transportado ao período da antiguidade através do espetáculo de dança internacionalmente conhecido: GALA, de Jérôme Bel, no Teatro Luiz Mendonça, pelo 30º FETEAG. Além de contemplar uma das três artes cênicas centrais da antiguidade, a dança, o espetáculo contempla o cerne da arte cênica em questão por meio de seu experimentalismo e por isso há a impressão sensível de viagem temporal.
GALA traz consigo o conceito do experimentalismo na dança por meio da simplicidade dos movimentos, em verdade, a montagem artística de Bel remonta ao conceito básico e chave por trás do termo “dança”, que é a arte de movimentar o corpo expressivamente e em ritmo. E eis o pièce de résistance da obra, trazer a simplicidade do movimento ritmado que não está atrelado à condição urgente da existência de uma coreografia compassada; de uma música; de um estilo; ou de movimentos “assertivos” determinados por outrem. A dança é exposta em sua forma pura pelos bailarinos profissionais e amadores, apresentando no palco um movimento expressivo ritmado, conforme cada corpo e história permite.
Somado a esse elemento técnico de como ocorrem as danças no palco, o espetáculo brinca com o seu próprio título para promover a estética existente. Na palavra “gala”, dentre seus muitos significados, podemos encontrar: júbilo, alegria, pompa, festividade, solenidade, ostentação e traje para atos solenes. Porém, quando pensamos na palavra em questão, imediatamente a imagem e o conceito de uma festividade pomposa vêm à mente e é nesse instante que surge a brincadeira com o termo e a estética, GALA assume o seu significado de festividade entre um grupo, no palco, prezando pelo avesso da pomposidade e ostentação; e primando pela simplicidade em cada detalhe, da iluminação aos figurinos e danças.
A apresentação remete, dentre tantas coisas a se remeter, a um trecho específico do livro Sombras da Água, de Mia Couto e recitado por Maria Bethânia em sua versão de A Flor e o Espinho, de Nelson Cavaquinho.
A música é a língua materna de Deus
Foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam
Que em África, os deuses dançam
E todos cometeram o mesmo erro
Proibiram os tambores
(…)
Dentre as possíveis inferências do trecho acima, há o elemento chave: dança é comunicação, música é comunicação, arte é comunicação; enquanto “a música é a língua materna de Deus”, a dança é a linguagem que os deuses “em África” exercem, mas ouso dizer que não só os deuses a fazem, nós mortais também dançamos e nos comunicamos. Dançar é, primariamente, comunicar-se. Cada passo, dedo erguido, ritmo, estilo, plano explorado, composição corporal, suor derramado… comunica algo sobre aquele indivíduo e seu corpo.
Nesse sentido é que se situa o espetáculo pensado por Jérôme Bel, com assistência de Maxime Kurvers e assistido e reencenado por Francini Barros, Marianne Consentino e Henrique Neves, com a participação de um elenco gigantesco e plural. São corpos pertencentes a indivíduos de diversas idades, múltiplos gêneros, plurais etnias, e variadas histórias que comunicam ao público um pouco sobre si, conforme os ritmos expostos, em uma grande caixa aberta e iluminada.
Dentre os atos da apresentação, há o momento inicial, absorto em silêncio com uma apresentação singela de slides ocorrendo, nesses slides surgem imagens de variados teatros e de início surge um estranhamento com tamanho silêncio e monotonia da apresentação de fotografias. Esse primeiro momento traz a dúvida ao público se realmente está assistindo a apresentação correta, é um instante quase anticlimático, mas coeso quando o todo é observado.
O instante anticlimático da apresentação, após a contemplação do espetáculo por completo da obra, é possível de ser compreendido sob algumas óticas e dentre essas óticas, encontro a que descortina mais um elemento importante sobre o conceito do espetáculo. A singela e cansativa apresentação de slides aponta para a simplicidade no now existente nos espetáculos cênicos, de forma que independe do espaço para que ocorra o espetáculo, basta haver um público e um artista que a comunicação está estabelecida e a arte concreta em seu ciclo.
Portanto, GALA, que dispensa as pomposidades, não seria diferente. As cenas ocorrem com figurinos simples, mas de cores fortes; bailarinos profissionais e amadores; uma iluminação simples, bastando uma forte luz branca para se enxergar o que ocorria no palco; e o público, essencial para que tudo ocorresse. Dentre o passar dos atos do espetáculo, vários estilos musicais foram contemplados pelos diferentes corpos e ritmos particulares dos bailarinos, dentre os estilos musicais estavam: o pop, o instrumental clássico de cordas e sopro, o bolero, o jazz, o ijexá — ritmo oriundo da Nigéria e incorporado a ritmos como o afoxé —, o funk, o coco e o xaxado. Cada um, como já escrito algumas vezes, dançado por cada ator conforme seu corpo e interpretações.
A obra por completa é divertidíssima, tanto para quem assiste, como para quem está vivenciando ela de dentro, no palco. É possível ver como os artistas na caixa iluminada se divertem e se emocionam, conforme passam os estilos musicais e ritmos. Além disso, não há espaço para julgamentos e avaliações tecnicistas sobre os corpos em cena, pois o palco é um reflexo de duas verdades quase esquecidas. A primeira verdade é que dançar pertence a uma condição natural e cada indivíduo possui o seu modo; enquanto coreografias e técnicas rítmicas são artificiais. A segunda verdade está contida na primeira, pois se dançar é natural, todo corpo dança, porque se há um movimento ritmado e com intenção, há nessa ação os princípios básicos de uma dança.
Por essa ótica, alguns ritmos são trazidos pelo espetáculo como o ballet, o foxtrot, a valsa… mas três momentos específicos merecem o devido destaque. O primeiro momento é o ritmo intitulado como “Michael Jackson”, os bailarinos representam, aos seus modos particulares, o famoso Moonwalk e outros passos de dança característicos do falecido rei do pop, o que é curioso, pois o estilo de dança dele era o popping — estilo pertencente ao funk original, também usado pelo James Brown (ícone do funk) —; porém, claro, essa forma de dança foi traduzido e interpretada ao estilo Jackson, o que proporcionou a interessantíssima brincadeira/verdade de haver um ritmo a la Michael Jackson.
O segundo momento que recebe a atenção é o curioso ritmo “Agradecimentos”, conforme a apresentação desvela para o público, há uma perspectiva cênica e rítmica em momentos de agradecimentos, principalmente quando os agradecimentos provêm de quem está em cima do palco. Por fim, o último momento o qual dirijo a atenção é para o ritmo “Companhia Companhia” que se opõe ao termo e estilo “Solo”, pois nesse instante os indivíduos em cena seguem o ritmo de um bailarino — profissional ou não — que toma a frente, executando passos de dança a sua escolha, conforme a música que elegeu, enquanto os demais copiam os movimentos que esse “bailarino-mestre” executa.
O posto de “bailarino-mestre” varia entre os integrantes do grupo e o espetáculo alcança seu momento mais belo, quando John Lopes desce de sua cadeira de rodas e executa a sua dança, à sua maneira, enquanto toca Spirit, interpretada pela Beyonce, e os demais seguem seu ritmo e passos. Esse momento além de quebrar preconceitos tão arraigados em nossa sociedade capacitista, levanta a imortal bandeira que é de todos, feita por todos e para todos.
Mais alguns instantes se passam e outras danças tão belas e importantes são executadas, deixando no espectador, após aproximados 65min de espetáculo, uma sensação de leveza e de amor próprio para com seu corpo e seus movimentos. Assim, GALA, por meio de sua simplicidade visual e sua complexidade teórica e ideológica, ocupa seu espaço de obra artística indispensável, principalmente dados os contextos atuais, ao provocar no espectador o senso crítico em relação à liberdade dos corpos e suas formas particulares de ser e de se expressar.
Eu quero assistir! Fiquei maravilhada com essa crítica brilhante.
Sensacional!