Foto: Lilianne Guerra
Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Setembro de 2021
…as pessoas apaixonadas veem o que imaginam, não o que seus olhos enxergam e, portanto, o Cupido alado é pintado com vendas nos olhos…
William Shakespeare
Por volta de 1595 e 1596, William Shakespeare apresentou pela primeira vez para o público sua comédia intitulada “Sonho de uma noite de verão”. Uma obra que tratava, sobretudo, do amor; às vezes correspondido e em outros momentos não, mas cujas referências estavam ancoradas no universo mitológico greco-romano e na literatura clássica. A história em si conta a saga do triângulo amoroso entre Helena, Lysander e Demetrius, tendo uma trama que se desenvolve a partir das decisões e escolhas sobre os seus relacionamentos, que sofrem interferências da família e dos seres que habitam a floresta, as fadas e Elfos.
Na peça shakespeariana é possível observar o quanto o dramaturgo estava conectado com a sua época, ao retratar a sociedade inglesa e o Renascimento, uma vez que utiliza como referencial na trama figuras da mitologia grega, como Teseu e Hipólita. “Sonho…” passou a ser considerado um dos principais trabalhos desenvolvidos na primeira fase do escritor e ao longo de várias décadas foi adaptado para múltiplas mídias. Até os dias atuais essa peça tem rendido pano para manga sendo, inclusive, utilizada como projeto de conclusão para a turma da Escola Social Cobogó das Artes, que se apresentou para o público no palco do Teatro Barreto Júnior, após a retomada dos espetáculos presenciais na cidade do Recife/PE.
Era um pouco mais das sete da noite, com a casa praticamente cheia, mas obedecendo aos limites estabelecidos pelo protocolo de segurança, por causa da Covid-19, quando iniciou a montagem “Sonho de uma noite de verão”, com direção de Vanessa Sueidy (tendo Gabrielle Pires como assistente de direção e Eduarda Melo como assistente de coreografia), também assinando a coreografia e figurino. Logo de imediato, observa-se uma cenografia criativa e lúdica, com uso de materiais recicláveis, que alude bem às cenas da peça. A iluminação cênica cumpre o seu papel, auxiliando na composição do cenário e permitindo nos remeter a atmosfera proposta pela trama, como no momento da floresta, na cena das fadas, por exemplo.
O figurino de parte do elenco é simples e sem grandes produções, tendo como destaque o visual do personagem Puck, que além de uma boa caracterização ganha o reforço da atuação e trabalho corporal encantador da sua intérprete Eduarda Melo. O Oberon, o Rei dos Elfos, interpretado pelo ator Antônio Valença também se destaca pelo trabalho de voz e de corpo, a partir da postura de autoridade que o personagem exige, em alguns momentos pecando pelo caricatural, mas na maioria das vezes sendo agradável de assistir. No seu figurino observa-se referências gregas, devido ao traje obscuro e aos chifres pontudos, remetendo mais ao Deus das Trevas da mitologia do que ao próprio Rei dos Elfos.
O melodrama da personagem Helena, interpretada pela atriz Beatriz Azevedo, a partir do gestual comedido e na expressão facial, é convincente, assim como, o corporal e o vocal desenvolvido por Bárbara Correia, para representar Fundilho, que depois se transforma em um asno. Já o trabalho corporal de Emília Marques, que faz a Rainha das Fadas Titânia, fica aquém do potencial da personagem, pela ausência de delicadeza e leveza nos seus gestos, do mesmo modo pelo acabamento do figurino.
No entanto, para além dos elementos cênicos, a dramaturgia truncada talvez seja o ponto que merece maior atenção, porque por mais que tenha o conflito dos casais como o principal ponto de partida, o cerne não está claro nas ações tomadas pelos seres da floresta. Já que na história, Oberon quer o pajem de Titânia e por isso ordena ao elfo que pingue sobre os olhos de Demétrio o sumo da flor, enquanto ele faz o mesmo com a rainha , fazendo-a se apaixonar pelo primeiro ser que avistar. Episódio que não fica entendível durante toda a adaptação da Cobogó.
Além disso, a tentativa de comédia shakespeariana da montagem é pouco engraçada, ainda mais quando em pleno século XXI, utiliza-se de uma das pautas delicadas sobre o universo LGBTQIA+ para provocar o riso, no momento que o personagem Flauta faz comentários infelizes sobre o fato de estar travestido com roupas ditas femininas. O tempo de montagem, com um pouco mais de 2h, a falta de nuances na atuação e o pouco dinamismo do texto também torna a experiência cansativa, salvo momento quando Puck aparecia e ajudava a quebrar a monotonia das cenas com uma pitada de humor, a partir das suas trapalhadas.
Os momentos de dança das fadas e dos elfos, que poderiam trazer essa modulação entre uma situação e outra são poucos explorados, a coreografia não desenvolve fortemente o trabalho corporal dos dançarinos, que apresentam passos já datados e com pouca energia. Aliado a isso, as músicas apresentadas em cena ora de cunho medieval, ora contemporânea, provocam uma incongruência na estética pretendida pelo espetáculo, associado ao texto também que mescla entre o rebuscado e o coloquial.
“A experiência não foi em vão”. Resumo essa frase dita por Puck, já próximo do término do espetáculo, para remeter essa adaptação de “Sonho …”, do projeto de conclusão da turma da Escola Social Cobogó das Artes, que tem seus méritos pelo resultado final da montagem, ainda mais pela coragem de adaptar uma obra difícil e conhecida mundialmente de Shakespeare. Fica evidente o esforço coletivo da equipe de produção diante de uma pandemia e da falta de patrocínio, seja pela mobilização, devido ao quantitativo de pessoas na plateia, como também por tudo que conseguiram produzir e realizar nesse período tão difícil para a arte.
Neste dia em questão, na plateia, tinha uma grande quantidade de crianças de uma ONG assistindo ao espetáculo que, inclusive, em um dado momento, participou interagindo espontaneamente com a cena, situação que tirou boas gargalhadas do público. O simbolismo desses pequenos ali presentes despertou a sensação de renovação. Foi bom ver essa nova geração indo ao teatro; que isso seja um presságio de esperança e de um novo tempo de prosperidade que há de vir.