Despudores Cíclicos – Crítica do espetáculo virtual “As Lebres São Maiores Que Os Ursos”

por Vendo Teatro
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Foto: Leandro Lima

Foto: Leandro Lima

Por Ananda Neres e Matheus Campos
Recife, Setembro de 2020

Entre|
Matheus Campos

Cardápio

a solidão entrou no bar
pediu um pingado com pão na chapa
e foi embora com fome

— Miró, Miró até agora

O grupo teatral Despudorado segue uma tendência bastante forte no cenário dramático atual de apresentações de monólogos e adaptações de roteiros para monólogos. O coletivo pôs à prova os elementos narrativos em sua peça original “As Lebres São Maiores Que Os Ursos” e com adaptações na mise-en-scène — tanto do espaço físico visual, quanto da divisão entre as cenas — e outras linguagens que agregam coesão ao produto final — música, iluminação, figurino —, as lebres e os ursos foram divididos em três partes, três monólogos: Entre, com Leonardo Alves; Caixa D’água, com César Pimentel; e DeCORpo, com Bruna Martins.

Contudo, levo os olhares para Entre e Caixa D’água, não de forma que separe o produto das encenações, mas em uma visão única sobre as lebres e os ursos que vagueiam pelos palcos-casa durante as apresentações. Há muito mais em comum entre os contextos e intertextos do que as linguagens que os separam.

Durante o exercício teatral de Leonardo Alves, em Entre, é possível sentir o desespero que cerca as personagens lebres e em como a solidão, alegada como solitude, corrói e destrói o que vagueia pelo palco e o próprio palco. Não são necessários gestuais demasiados ou longos textos como de costume em monólogos, o corpóreo simples e cru, em movimento constante, quase involuntário e ébrio, desvela o vazio e sentimento de agonia constante da lebre. Sempre alerta, sempre em movimento, sempre se escondendo entre as luzes, sempre sobrevivendo aos ataques de ursos. 

A musicalidade repetitiva e frenética penetra os ouvidos e ganha cor e imagem, transforma os físicos na sala em metáforas. Há uma história por traz de cada palavra e de cada gesto da lebre diante dos nossos olhos. É possível sentir que se trata de uma lebre sozinha, longe do reconforto de seu grupo, aflita, tentando achar um espaço em que se encaixe e em seu desespero gritante, tudo que ela recebe do mundo é silêncio. Sua garganta é abusada pelos ouvidos que não a ouvem, seus olhos sangram pelos olhares que se deviam dela, seu corpo e alma são um sepulcro invadido e abusado pelo mundo ao redor e or ursos que habitam nele. 

A ficção ali criada é palpável e simultaneamente recria o universo de um jogo de 8 e 16 bits, os espectadores são os gamers, por sua vez, a Lebre-Palco no palco é o personagem desse jogo e nesse sentido, todos que espectam, que jogam, são a lebre, são o personagem que encara uma entidade narrativa e ativa oculta: a câmera. Sim, durante o monólogo e suas camadas, a câmera não está ali somente como um recurso necessário, mas me parece ser um narrador-personagem e o ator-personagem — Leonardo Alves — é, como disse acima, uma Lebre-Palco, seu corpo também é um palco que se molda, agita e sofre.

DeCORpo
Ananda Neres

[…] A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

(Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo)

Pele. Maior órgão do corpo humano, responsável pela proteção. Mas qual pele é protegida? Em DeCORpo, monólogo de Brunna Martins que encerra a trilogia de monólogos “As lebres são maiores que os ursos”, do Coletivo Despudorado, a pele tem cor, gênero e voz.

Realizada pelo Google Meet, a apresentação centra o espectador num ponto fixo (câmera), no qual, observa a encenação realizada ao vivo, assim como a iluminação e a sonoplastia. Configura-se analogamente às apresentações que presenciávamos em tempos pré-pandêmicos. Porém, a sensação é outra. O texto é agora dito a mim! Com olhos que pareciam caçar os meus. Particular e exclusivamente. É perto. Incomodamente perto. 

Em fragmentos cênicos, DeCORpo assume a voz repetidamente negada da mulher negra, suas angústias e alentos. As imagens apresentadas invocam diferentes estigmas sobre o corpo desta, forçada a dançar conforme a música que lhe impõem à exaustão. DeCORpo fetiche. DeCORpo objetificado. DeCorpo trabalho. Mas não só, por outro lado, faz ressoar a voz daquela que se fortalece nas vozes das que a antecederam. O corpo mostra-se dono de si. DeCORpo força. DeCORpo beleza. DeCORpo fé. Encontra-se consigo nas águas tranquilas, uterinas, ancestrais.

O monólogo aponta para as especificidades das agressões sofridas por estas que não somente são o outro do homem, como também o outro do branco. Suscita reflexões sobre a construção da nossa nação e desvela o mito da miscigenação – recentemente reafirmado pelo presidente ilegítimo e genocida da república no pronunciamento de 7 de setembro – em sua essência: exploração do corpo que gera e alimenta. 

O passado ecoa no presente, as formas mudam e a violência permanece. Seja na mira do chicote ou do fuzil, seja extraída de seu continente ou de sua casa, seja encarcerada na senzala ou no presídio, seja vendida no mercado ou no carnaval, seja violentada pela polícia ou pelo capitão do mato, a pele negra é sempre o alvo. Útero de filhos roubados. Brunna Martins, em seu monólogo, coloca o dedo na ferida colonial e mostra o que se insiste em ignorar.

Caixa D’água|
Matheus Campos

Não esqueça da minha Caloi

Deus saiu pedalando sua bicicleta
pra olhar melhor
o que se passa nas esquinas
Deus não entendeu nada
quando viu uma mulher
comendo coisas do lixo
e um homem vendendo água
Deus deu uma paradinha
na banca de revistas
e leu a notícia:
pai mata filha de cinco meses com cinco facadas
Deus largou a bicicleta
pegou um foguete
e voltou pra casa

— Miró, Miró até agora

Já durante a apresentação de Caixa D’água de César Pimentel, é possível sentir o medo gerado pelas vivências, pela pressão do meio e a raiva gerada na lebre devido às experimentações traumáticas sofridas e causadas por ursos. Os olhos da personagem gritam por um socorro e seu corpo levanta bandeiras em forma de luta e protesto pelos preconceitos vividos e experimentados de forma amarga e traumatizante. A moral é posta contra a parede e criticada, os valores tão representados por grupos autodenominados de tradicionais e conservadores — os maus “bons defensores das morais e civilidades”— são descascados e contra argumentados. 

O espectador não parece ser e “jogar” com essa lebre, mas parece estar sentado ao lado dela, do lado de fora de sua casa, em cadeiras de plástico, conversando sobre a vida, contando histórias vividas,  em um fim de tarde, numa rua com pouco movimento, mas conversando em um tom baixo para os vizinhos fofoqueiros não escutarem, enquanto ao longe é possível ver  crianças brincando de pique-esconde. Contudo, embora essa câmera personagem gere essa leve sensação, os assuntos dessa conversa de fim de tarde, entre comadres e compadres, são sérios, intimistas e alfinetam quem os dizem e quem os ouvem. 

Ainda de forma descontraída, um trocadilho com o nome do coletivo “Despudorado”, perguntei ao ator César Pimentel “Essa câmera no teatro online, ela despe mais ou põe uma pele mais grossa?”. Ele parou, pensou um pouco, soltou um leve sorriso e respondeu “Ela com certeza despe mais.” e alguns companheiros do coletivo, que assistiram ao monólogo, pareceram concordar com a resposta do ator.

E embora existam certas particularidades entre os monólogos, eles geram perguntas como: quem tanto correu e se escondeu, mas sempre esteve entre a cruz e a espada? Quem tanto nadou e nadou, com medo de morrer ao chegar na beira da praia, e quando viu o fim das águas se deu conta de que era apenas uma caixa d’água? Quem nunca se sentiu menor e em meio a pressão tentou entrar em uma pele que não lhe cabia, como uma lebre que por vezes tenta se passar por um urso? Não por querer, mas precisar, por sobreviver. Mundo urso, vida lebre.

Ainda que distintos, iguais, pois os monólogos despem a sociedade, as pessoas e geram a visão de que ou se é lebre ou se é urso, mas no fim das contas todos tentam sobreviver. Uns sobrevivem com força e opressão, outras sobrevivem com inteligência e coletividade. Vida lebre, vida urso, mundo homem. Quem sabe um dia, depois de muita luta e desconstrução, é claro, não sejamos apenas lebres ou apenas humanos, mas jamais ursos. 

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Maria Carolina Silva
3 anos atrás

Fiquei com vontade de assistir? Quando terá? Como esta sendo a divulgação nesse novo modo de fazer arte? Se tudo aue li, foi passado pelo meet, o teatro está mudando e para melhor.

Aline Lima
3 anos atrás

Olá, tudo bem? Muito feliz com seu comentário. Provavelmente o grupo terá novas apresentações em outubro. Fica ligada no nosso Instagram @vendoteatro que a gente divulga lá. Abraço.

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