Defronte com a batalha da vida | Crítica de “Que Deus Sou Eu”

por Vendo Teatro
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Foto: Flora Negri

Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Março de 2020

                                                     “É melhor conquistar a si mesmo do que vencer mil batalhas.” – Buda

Na cultura indiana existe um texto muito antigo, retirado da bíblia do hinduísmo, Mahabharata, que trata sobre o autoconhecimento a partir de alguns valores fundamentais. Ele funciona como um guia para quem deseja evoluir no plano espiritual e estar em sintonia com o mundo à sua volta: me refiro ao Bhagavad Gita. A obra oferece um valioso antídoto contra pensamentos negativos, inclusive, sobre nós mesmos, e pode ser seguida como uma forma de promessa, com a intenção de levar o indivíduo a encarar a realidade como, de fato, ela é. 

Em Que Deus Sou eu, espetáculo dirigido e escrito por João Falcão, o Bhagavad Gita serve de inspiração para contar a saga de duas figuras da narrativa religiosa, Arjuna (Daniel Farias) e Krishna (Leandro Villa). A trama, assim como a história oficial, acontece a partir de uma série de indagações que aflige o príncipe guerreiro ao se deparar com uma guerra, cujos adversários são nada mais e nada menos que formados por pessoas que mantém um laço afetivo (família, amigos e conhecidos). Nesse momento, o assustado personagem trava uma batalha que podemos vê-la sendo desenvolvida ao longo da peça. 

Apesar de todo contexto de guerra, visto alguns gestos de luta e a forma como os personagens encaram a situação, o entrave que o guerreiro precisa enfrentar é contra ele mesmo. Uma batalha da vida. Mas a ideia de combate também é reforçada com a trilha sonora de Felipe Guedes, no estilo medieval, e o figurino, que também ajuda a criar essa imagem, pois os dois atores usam uma vestimenta marrom que remete às usadas pelos guerreiros antigos.  

A abertura do espetáculo surpreende pela inovação, quando reproduzem, por meio de um projetor, em uma bandeira de pano, o nome da peça, dos atores e equipe técnica. Com o cenário simples e uso de poucos recursos cênicos, destaque para o carretel de madeira, os personagens abusam da criatividade para reaproveitar o objeto, desde o topo de uma montanha a uma simples mesa. 

Em cena, assim como no livro, o diálogo entre o discípulo e o mestre permeia toda a peça. Um dos pontos que chamam atenção é a conexão e entrosamento entre os dois atores em toda narrativa, além disso, as doses de humor colocadas no momento certo da conversa permitem que os espectadores possam criar uma empatia e simpatia com as angústias do guerreiro Arjuna e o jeito debochado do sábio Krishna, pois parecem bem atrapalhados, mas também melhores amigos. 

Outro ponto que merece ser destacado da peça é a personificação do criador supremo sendo feita pelo ator preto, trazendo para a história um simbolismo e representatividade. Afinal o Ser Divino não possui gênero, sexo e nem raça, ele está dentro de nós e representa o melhor que há em cada um. Vale frisar que essa é uma versão adaptada do espetáculo Dhrama, cujos personagens Krishna e Arjuna eram interpretados por Alinne Moraes e Osvaldo Mil, respectivamente. Depois ainda houve uma outra montagem traduzida para inglês, sendo apresentada no circuito off Broadway, em Nova York, pelo diretor Luca Bianchi, em 2014. 

Em aproximadamente 40 minutos de peça, várias reflexões proporcionadas pelo Bhagavad Gita são levantadas no palco do Teatro de Santa Isabel, no Recife, por meio do impasse do discípulo e da conversa com o mestre, que o indaga sobre as aflições e ajuda o guerreiro a repensar nas suas atitudes, lembrando da sua missão no mundo. São questões relativas a emoções, medo, ausência do orgulho, acomodação, persistência e de entendimento da vida, na busca constante pelo conhecimento, a partir da ideia também de que a dor como sofrimento é algo que nos acompanha desde o nascimento até a morte. 

É certo que a obra hindu é complexa, cheia de interpretações e merece ser melhor estudada, ainda mais quando tocamos em assuntos tão profundos. Entretanto, por meio espetáculo Que Deus Sou Eu, pude sair do teatro sendo tocados com a sábia história de Arjuna e Krishna, tendo como uma das lições, a necessidade de estarmos sempre em evolução como ser humano e colocando para fora o que há de melhor dentro de nós. Afinal, a verdadeira batalha é a da vida e só quem luta contra os inimigos internos pode sair vencedor. 

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