Foto do Bote de Teatro: Desna
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Março de 2021
“Deus engendrou o ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.”
— Machado de Assis. O Alienista
Seguindo essa perspectiva de Machado, Deus engendrou o universo, que engendrou o mundo, que engendrou o homem, que engendrou a propriedade privada, que engendrou o cerne da sociedade atual, que engendrou uma fábula popular, que engendrou “Os músicos de Bremen” dos irmãos Grimm em 1819 e o “Manifesto Comunista” de Friedrich Engels e Karl Marx em 1848, que engendraram tantas e tantas criações, como por exemplo: “Salto”, do Bote de Teatro. A criação artística do grupo teatral pernambucano, declaradamente inspirada em “Os Saltimbancos” de Chico Buarque.
O trabalho do Bote de Teatro possui raízes de inspiração no musical infantojuvenil de 1977, “Os Saltimbancos”, uma tradução e adaptação de Chico Buarque da peça teatral “I Musicanti”, de Sérgio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov, inspirada na fábula dos Irmãos Grimm “Os músicos de Bremen”. O musical infantojuvenil adaptado de Chico conta a história de um operário (o jumento), um soldado (o cachorro), uma camponesa (a galinha) e uma artista (a gata), que, rebelando-se contra seus donos e opressores, juntaram-se para formar uma banda e juntos explorar a liberdade.
Mas no meio de sua jornada para liberdade, os animais encontram seus antigos opressores, em uma pousada a qual, eles, os animais, não podiam entrar. Com isso, como ápice de sua revolta, os bichos agem contra seus antigos donos e os expulsam da pousada, tomando conta do local para si e retornando às suas antigas atividades (o operário, o guarda, a camponesa e a cantora), mas sem a influência e opressão daqueles que anteriormente detinham o poder sobre a liberdade.
Dessa forma, quando analisamos bem as nuances por trás da história, é possível dizer que os irmãos Grimm, Bacalov e Buarque resolveram confiar às crianças o verdadeiro espírito da revolução, pois por meio de sua arte, eles pulsam para o público infantojuvenil o antigo grito por aquela coisa que, como Lispector já disse, não é liberdade, é algo ainda sem nome. E seguindo o desejo por esse algo ainda sem nome, está a dramaturgia Salto, que herda, aparentemente, o cerne das criações que a antecede, porém não se destina para o mesmo público e nem segue os mesmos formatos estilísticos.
O drama feito pelo Bote de Teatro é decididamente para maiores de 18 anos, não apenas pelas cenas que o compõem e pelos diálogos intensos e muitas vezes longos, que exigem de quem o assiste um conhecimento fora da caixinha do “senso comum”, mas também pela estilística surrealista trazida pelo espetáculo, a qual é resultado de todos os elementos presentes durante a obra. Dito isso, é válido pontuar brevemente o que é o surrealismo. Um movimento artístico, lançado em 1924 por André Breton, caracterizado pela expressão espontânea e automática do pensamento, um verdadeiro fluxo da consciência, muitas vezes deliberadamente incoerente, o qual estabelece como padrões o uso do onírico, do inconsciente, do instinto e do desejo, de forma que recria ideias políticas, filosóficas etc.
A partir desse mote, é possível alegar sim que a obra é surrealista, cyber-surrealista. A adaptação do grupo parece ser algo que mistura o surreal distópico de um universo similar ao do filme Matrix e o real quase-distópico da atualidade, embebidos pelo espírito da revolta contra o sistema e contra suas cadeias de controle sobre o indivíduo comum.
Porém, para que esse universo seja de fato formado, diversas linguagens dialogam simultaneamente. A começar pela iluminação que explora desde luzes de ribalta a backlights fortíssimos em cores vivas e com padrões de oscilação quase estroboscópica — pessoas com sensibilidade à luz podem ficar extremamente incomodadas. Os figurinos e cenários também auxiliam na composição do surreal, pois lembram levemente a elementos dos universos cinematográficos como o de Mad Max e Blade Runner, famosos por serem filmes de distopias futuristas. Outro elemento importantíssimo são os diálogos, longos e espontâneos, encadeados como um grande fluxo de pensamento, similar a uma conversa entre pseudo-intelectuais bêbados, geram o ar de aquilo ali ser um grande delírio coletivo.
Além disso, a história em si, se passa em um universo cibernético, distópico, controlado por um ser superior de inteligência quase ilimitada, a “ausência-de-fim”, e conta com pessoas perdidas de seus rumos — um operário, um escravo sexual, uma andarilha e um viciado ou apenas quatro sujeitos-usuários. As personagens não tem objetivo ou propósito algum, não sabem exatamente o que querem, apenas sabem que não aguentam o sistema em que vivem e se rebelaram contra ele, seu lema é “ir além e ver no que vai dar”.
A obra também flerta, em muitos momentos, com o teatro do absurdo, pois o teatro do absurdo tem em seus focos questões como o existencialismo e a ausência de sentido e de propósito nas relações humanas, como resultado da dissolução das comunicações e o processo de mercantilização do social, e representa isso em cena através de absurdos reais do cotidiano. Salto, assim como expressões dentro do teatro do absurdo, traz consigo, além da revolta contra o sistema — que é um dos elementos herdados de Saltimbancos —, reflexões sobre a existência e a condição humana.
Porém apenas flerta com o teatro do absurdo. Porque, como dito antes, as estilísticas estão voltadas mais para um trabalho surreal e não se poderia conceituar a criação artística do Bote de Teatro como teatro.
O teatro é marcado por ser a arte do efêmero, do happening now (ou o que acontece agora), como isso poderia estar presente em um vídeo? Quem sabe, talvez, se feito em um take apenas e com o plano aberto ou feito no agora, em live, tais elementos consigam ser preservados. Mas o que há de espontâneo em mais de um take? Onde está o efêmero em edições e efeitos computadorizados?
Nesse contexto, Salto é uma incógnita quanto a sua linguagem. É cinema? é Teatro? A reprodução dramática conta com as gravações ocorrendo no espaço físico de um teatro e possui a intencionalidade, por trás da obra, de ser algo ligado ao teatro. Todavia, traz elementos de edição gráfica, edição de áudio, edição de imagem e planos de câmera tipicamente usados pelo cinema como: o Plongée, quando a câmera pega uma visualização de cima para baixo; o Plano Americano, a câmera normalmente mostra as personagens dos joelhos para cima e não enfoca em temas; o Primeiro Plano, com a câmera bastante próxima, a imagem se concentra na personagem dos ombros para cima; e o Plano Detalhe que é ainda mais próximo de todos, o detalhe serve para dar foco a alguma coisa pequena, como o olho ou um anel.
Essa linguagem a qual Salto e outras obras criadas no contexto da pandemia pertencem, ainda parecem ser uma incógnita e fica a responsabilidade para os estudiosos, em um futuro não muito distante, tentarem definir o que é. Mas por hora que se aproveite o possível, dessas criações híbridas, pois, embora existam contradições e confusões na linguagem do produto final, também existem vantagens. Alguns dos elementos extremamente positivos na composição do híbrido do Bote de Teatro são a qualidade de áudio, a presença de legendas e o recurso inclusivo da tradução simultânea em LIBRAS, no canto direito da tela.
Por fim, é possível dizer que o drama é uma incógnita compreensível, pois desde as escolhas da adaptação e suas estilísticas à linguagem a qual a obra permeia, há a constante presença de enormes pontos de interrogação, mas, simultaneamente, em meio à chuva de informações e linguagens, alguma mensagens são captadas. É uma arte para ser vista com calma, com conhecimentos prévios e com certeza mais de uma vez.
Verdade!
A peça salto é uma peça muito rica de detalhes e com certeza para compreender o a história quer passar para o telespectador deve ser vista,várias vezes.
<3