| Crítica de “Daquele Naipe”

por Vendo Teatro
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Por Natali Assunção
Recife, Setembro de 2019

Daquele Naipe            

            As ruas do centro do Recife não foram as mesmas na sexta-feira, seis de setembro de 2019. Às vésperas da comemoração da independência do Brasil, em tempos nos quais se tenta silenciar a cultura, a arte e a educação, o grupo “Camomila com Pimenta”, de Minas Gerais, veio soltar a voz com o espetáculo “Daquele Naipe” no meio da rua, no meio do bar, no meio da praça, no meio da gente, da gente toda que passa, que come, que bebe, que transita, que corre em busca do seu ganha-pão e que, por vezes, não tem tempo para contemplar.

            O “Transborda – Usina Teatral” (SESC Santa Rita/PE) acontece de 17 a 21 de setembro com o tema “O Teatro e a Cidade: a (des)construção dos espaços cênicos/urbanos na cena contemporânea”, mas antes do evento propriamente dito aconteceu ainda o “Pré-Usina”, com oficinas e apresentações em diálogo com o tema em questão,  que culminou com o citado espetáculo.

            Tais quais os quatro grupos de cartas de um baralho, cada qual indicado pelo seu respectivo naipe, a atriz Isabela Freiria apresenta ao público diferentes facetas de uma mulher. Ou seriam quatro mulheres que apresentam facetas similares e ainda assim diferentes que estão em diálogo com todas nós? No decorrer da nossa caminhada somos apresentados a quatro personagens: uma noiva em fuga do seu casamento, uma vendedora de brigadeiro, uma mulher que só quer tomar seu café e fumar em liberdade e uma esposa de si mesma.

            Trajando seu vestido de noiva a atriz chega de bicicleta a uma ruela do centro do Recife. Quer falar, quer desabafar, que dizer a todos e todas que desistiu de ser noiva de alguém, de atender pelo sobrenome de outra pessoa porque se viu em uma rede de repressão pelo simples fato de ser mulher. Estamos em uma rua cheia de pequenos botecos e iniciar esse espetáculo diante das mesas masculinas que reproduziam, em parte, o discurso “fictício” da atriz já é um dispositivo de provocação. Ela “sozinha” falava sobre como não tinha direito nem mesmo a se colocar em conversas. Eles gravavam, tiravam fotos, falavam de seu aspecto físico e se riam.

            Depois dela somos conduzidos pela vendedora de brigadeiro que nos conta de suas dores e dos machismos que presencia diariamente. Camomila, em uma terceira rua, nos questiona sobre por que seria um crime ela fumar seu cigarro e beber seu café? Por quê? “É camomila”, ela grita e o cheiro da planta atinge os que estão próximos à atriz. Por quê? Na última etapa, quase diante do Teatro do Parque, fechado desde 2010[1], a quarta mulher chega do seu casamento com ela mesma. Celebra-se e acaba em festa, um corpo em festa. Na transição entre uma cena e outra por vezes dois atores conduzem o público com som, dança e festa, uma quebra da dor.

            São quatro mulheres, em diferentes etapas da vida, em busca de si mesmas e de suas liberdades, mulheres-momentos que parecem se complementar na jornada da heroína: A primeira percebe que a repressão não a representa e busca romper as amarras. A segunda, viúva, procura manter suas raízes e reverberar nas que precisam dela. A terceira quer fazer o que tem vontade, quer dar voz e corpo aos pequenos prazeres, empoderando-se de si mesma. E a quarta se basta consigo. “Por isso que todas as feministas de um modo ou de outro, quando escrevem, falam de si mesmas. Aprenderam que o feminismo lhes devolve a biografia roubada. Nesse sentido, o feminismo tem como base ético-política a construção de si, que deve dar às mulheres outro lugar, no campo das decisões.”[2]

            Isabela Freiria segura bem a onda de conduzir o público e se desdobra nessas mulheres, no entanto o espetáculo tem suas fragilidades. Sendo na rua, faz-se necessário dialogar e até mesmo incorporar eventuais situações “externas” à cena e, nessa apresentação, foram muitas as “interferências” que acabavam sendo quase ignoradas. Se deixamos a caixa cênica a rua e seus habitantes também passam a compor a apresentação.  Além disso, o texto fica em um lugar mais óbvio da reinvindicação, quase didático. Opta por uma linguagem mais explícita, o que talvez seja uma escolha de enviar uma mensagem direta às ruas. 

            O grupo lembra, portanto a importância de falar sobre essas questões. Ainda são questões. Diariamente. Lembra que é importante se posicionar, que a arte é a ferramenta dos artistas. Que é importante ocupar as ruas e provocar. E isso ganha novas camadas quando a apresentação tem um dos principais equipamentos da cidade, fechado há cerca de nove anos, sob promessas de reforma, como espectador.


[1] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/teatro-do-parque-tem-fim-das-obras-previsto-para-novembro-de-2019-diz-prefeitura.ghtml

[2] TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: Para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. Pág. 94.

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Júlia Veras
4 anos atrás

Obrigada pelas palavras.

Isabela Freiria
4 anos atrás

Agradeço pelos toques.
De fato é fundamental que se abra a escuta por completo quando se está na rua.
O óbvio, ainda que não seja rebuscado, se faz necessário para maior absorção do cotidiano. Pois mesmo quando o óbvio foi dito, houve assédio naquela mesma noite, naquele mesmo espaço. O que é batido pra nós que estamos aprofundando os estudos nesse tema, pode não ter chegado aos ouvidos ou compreensão de quem vivencia outro cotidiano.
Mais uma vez, agradeço o retorno!

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