Canto Aos Esquecidos | Crítica de Solo Para Um Sertão Blues

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Ananda Neres
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro 2021

Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres […]

A partir de agora, considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues¹

Você conhece Moacir Santos? Robert Johnson? Jazz Band União Bodocoense?

Tudo que quando era preto, era do demônio
E depois virou branco e foi aceito
Eu vou chamar de Blues¹

Você conhece Tom Jobim? Elvis Presley? The Beatles? 

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração²

Criado a partir da obra “Solo para Vialejo”, de Cida Pedrosa, o musical “Solo para um sertão blues”, com direção de Claudio Lira, integrou a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos (2022).

Em cena, quatro mulheres negras migram. Movimentos. O primeiro deles através do Atlântico colonial. Diáspora. Em terra Brasilis, novo movimento. Do mar ao sertão. Para esta viagem pedem a proteção dos orixás.

 Sertão

Sertões

Em busca de si e do outro.

No destino, encontramos com as personagens de Bodocó, mulheres catadoras de algodão, mães e filhas, fiéis que cantam nas igrejas, as jazz bands… Mas quem eram essas pessoas? Quais os seus nomes? Para além do estereótipo, quem são os sertanejos?

As músicas do espetáculo não são só como “o fio que conduz as miçangas vistosas e coloridas”4, as melodias – interpretadas ao vivo por Douglas Duan e Arnaldo do Monte – são marcantes. Anunciavam e transportavam por sensações paradoxalmente longínquas e contemporâneas. Duan, que assina a criação e direção musical, mostra uma nova face, parece, ao fim, ter encontrado o espaço para fazer sua música brilhar, espaço encurtado ou muito pontual em trabalhos anteriores. 

O musical faz reverência à música e aos músicos. Há na música de Duan um imbricamento de ritmos e estilos, que remetem a elaborações negras de berço, como o samba, o jazz e o blues. Mas além disso, territorializa o diálogo ao trazer elementos de ritmos pernambucanos, o que amplia a percepção da problemática do apagamento dessas figuras. Quem são os mestres de maracatu, de forró, de frevo? Quais seus nomes? 

Na adaptação do poema para a dramaturgia, elementos da cultura afrobrasileira não presentes na obra originária integram o espetáculo, como a referência aos orixás ou a licença poética para modificar o verso. Para ilustrar, trago uma fala do fim do épico de Pedrosa:

“[…] me encontro e te encontro no som para encontrar deus na esquina e o diabo na encruzilhada”³

Contudo, na boca de Fernanda Spíndola, o poema se faz “me encontro e te encontro no som para encontrar deus na esquina e exu na encruzilhada”. O nome do orixá é verbalmente destacado. Pode parecer à primeira vista uma modificação desimportante, talvez passe até despercebida, mas, ao realizá-la, a atriz marca o lugar de que se fala. Afinal, Exu é uma das divindades mais atacadas pelas religiões cristãs. Literalmente demonizado. Assumir essa fala é afirmar uma posição de defesa do que foi negado. É saber-se negro, coisa que Bodocó não sabe e que Cida não é.

Brunna Martins, Fernanda Spíndola, Jhanaína Gomes e Célia Regina revezam-se para cantar esta história. E a cantam sem microfone, fato que em nada prejudica a recepção. O espaço reduzido do Teatro do Hermilo Borba Filho e a projeção vocal das atrizes dão conta do recado.

Aqui destaco a atuação magnetizante de Célia Regina que não só preenche com sua  presença todos os espaços do palco, mas também, por parecer trazer na voz a aridez do sertão. A força da natureza. 

Solo para um sertão blues nos convoca a redescobrir os sertões.

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