Camp, Camp, Camp! | Crítica de Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Maio de 2022

Kill everyone now! Condone first-degree murder! Advocate
cannibalism! Eat shit! Filth is my politics! Filth is my life!

(John Waters/Divine, Pink Flamingos)

A espalhafatosa experiência camp de “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”, da Cobogó das Artes, começa muitíssimo antes da cortina do Teatro Apolo abrir. Os cartazes de divulgação que foram compartilhados nas redes sociais já dão por si o tom a ser encontrado em cena: em sua desarranjada paleta de cores pastéis e fotografias ultra-tratadas por computador, um deleite. Já na estreia, na primeira apresentação, um grupo de crianças do Projeto Pirraias da Periferia está presente ali, crianças de cerca de dez anos que estariam em breve com um conteúdo que tem uma classificação etária por volta dos 14; é divertido ver e ouvir aquele buchicho da criançada ansiosa. Eu estava ali com elas. Na ansiedade divertida. O codiretor do espetáculo, Adriano Portela, entra então pela cortina dando avisos antes de começar, tomando o tom cômico de primeira, legendando o que será visto, deixando claro o contexto no qual seremos inseridos, botando todos os pingos em todos os ‘is’ e em alguns ‘ípsilons’ também; fazendo um perspicaz trabalho de aliteração da proposta. Começamos e continuaremos em grande estilo. E a experiência imersiva vai se dando do lado da plateia também; ao longo de cerca de 40 minutos do trabalho começado, uma pessoa da produção tirava fotos com flash da plateia, do palco, dos atores em cena e zanzava de um lado para o outro da parte de cima do teatro, interferindo cômica e incomodamente em plena consonância com o espetáculo que se apresentava. Imersão completa no universo camp proposto.

A obra homônima de Caio Fernando Abreu, escrita em um só ato, se dá principalmente como uma força de contracultura ali por meados dos anos 70, mas, censurada pela ditadura, só ganha sua primeira publicação em 1997. Dessa forma, indo poderosamente antagônica ao conservadorismo que se mesclava com a ditadura assassina e cruel no Brasil, “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”, adaptada aqui pela Cobogó das Artes, encontra um terreno fértil para fazer sua morada irônica se estendendo à 2022. O mundo mudou. Mas o estridente trabalho, com direção assinada por Adriano Portela e pela estreante Eduarda Melo, se mostra particularmente potente ao se propor despretensioso, humilde, tão completa e refrescantemente falho ao longo de seus mais de 90 minutos de cena que o triunfo está no caos jovial proposto.

Eu poderia levantar aqui uma problemática LGBQIA+ sobre representações, gordofobia, capacitismo, até mesmo misoginia e machismo do texto; mas o camp é maior que tudo isso. O camp é Divine comendo merda de cachorro em Pink Flamingos. O camp é bufonaria. O camp não tem limites pautados no real, muito menos no político, o camp é apolítico e caótico. O camp é incólume.

O espetáculo aqui conta a história de um grupo de jovens que se vê preso num casarão abandonado no meio de uma extrema chuva; imaturos em sua maioria, o grupo está ali discutindo o anseio e a força-motriz de um estado de espírito que beira o inacreditável, mas também incomodado e com uma esperança rasa. Personagens múltiplas que perpassam uma grávida, uma hippie, um trio de meninas quase siamesas, e mais outros tantos gritos dramatúrgicos de personagens-tipo estridentemente deleitantes.

No âmbito tomado camp e kitsch para montar um trabalho tão absoluta e afavelmente amador em suas propostas cênicas, vale destacar aqui os momentos musicais, ponto alto do espetacular espetaculoso espetáculo, melhor ainda quando cantados ao vivo; numa ode à programas de talentos de televisão. Inclusive, a televisão é uma estética assumida no trabalho, uma homenagem à sitcoms impregna todo o trabalho proposto; das atuações farsescas ao meticuloso desarranjo dos figurinos, o camp está presente a todo momento no furacão cômico que é “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”. São tantos os momentos icônicos do trabalho que fica difícil pontuar apenas um, tudo está tão concatenadamente torto que o mosaico que vemos é extremamente engraçado e movedor de entretenimento. A plateia se dobrava nas cadeiras, o riso era fácil, solto, frouxo, de uma ingenuidade pulsante que poucas vezes vi no teatro; ressalto grandioso para o trabalho de Eduarda Melo como atriz, ela e sua personagem Amélie são a chave para a maior diversão possível e imaginável. A atriz está em cena como uma mestra de ventriloquia da atmosfera, cada reação que ela tem da cena, de dentro da cena, altera a percepção do espectador sobre o trabalho; Eduarda entrega aqui um trabalho de tamanha espontaneidade que vai ser difícil um dia esquecer de suas caras e bocas tão precisas a todo aquele absurdo que é o enredo a peça, especialmente numa cena em que performam um parto no palco, Eduarda capta uma essência de comédia do absurdo como ninguém.

Em deleitosos momentos surrealistas de descontinuidade, como o que os personagens simplesmente sobem uma escada claramente folclórica, o jogo cênico com os sotaques e as outras línguas, afora o português, é de tamanha vertigem que há momentos em que os próprios atores em cena fazem uso de sotaques de personagens que não são seus; uma grande La Tomatina, guerra de tomates tradicionalmente espanhola. E não para por aí, imitações fantochadas de ícones da contracultura, como Fred Mercury e John Lennon, dão ainda mais estofo para esse grande puff em formato de melancia posto num consultório oncológico que é a montagem desse espetáculo; há aqui um tesão absurdo pelo próprio absurdo, uma idolatria ao senso comum numa subversão dele ao passo que o glorifica. Está tudo errado, está tudo fora de lugar. Não estamos também assim o mundo e seus habitantes? Transitando pelo absoluto absurdo camp, “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora” é muito mais do que um espetáculo teatral, é uma experiência antropológica sobre a existência humana levada à sua potencialidade de escombros numa comédia caótica.

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