Cada Escolha É Um Prelúdio Do Que Virá | Crítica de “O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov”

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Matheus Campos

Recife, Novembro de 2019

Cada Escolha É Um Prelúdio Do Que Virá

”Nada estava em sintonia, nunca. 
As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte congelado, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroína, suco de cenoura, suicídio, roupas feitas à mão, voos a jato, Nova York, e aí tudo se evapora, se rompe em pedaços.
As pessoas têm de achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha.
Eu tinha feito minha escolha. Ergui a garrafa de vodca e dei um vasto gole. Alguma coisa aqueles russos sabiam.”
– Charles Bukowski, Mulheres

Sob uma perspectiva niilista, crítica das consciências e das verdades, surgiu tal trecho de Bukowski, o qual leva a uma reflexão intimista do imediatismo social presente em cada um e das incertezas enraizadas no cerne humano. Seria a vida apenas um pequeno estado de êxtase antes da morte? A esperança de uma irônica vida pós-morte é só um consolo e/ou trava de segurança para a humanidade?

Ao partir de tal ideia, ou melhor, ao surgir com tal idéia, Fiódor Dostoiévski escreveu, em 1879, o livro “Os Irmãos Karamazov”, livro esse que inspirou o niilismo de Nietzsche – que inspirou Bukowvki – e mais tarde foi utilizado, como fonte principal, para a teatralidade “O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov” da Cia N.A.V.A. de teatro, com a direção de Leandro Navarrete, a qual alcançou o status de um espetáculo visceral, assim como a obra original de Dostoiévski.

Entretanto, antes de qualquer impacto com a teatralidade em si, o nome dado ao espetáculo já desperta interesse, pois, segundo teorias, o nome Karamázov vem da junção de “Kara”, que significa castigo ou punição, juntamente ao verbo “Mazat”, que significa sujar e ou/ não acertar, e de acordo com alguns, Karamazov se define como: aquele que com seus erros/caminho errante tece a sua própria desgraça. Dessa maneira “O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov”, antes de qualquer coisa, demonstra fortemente suas intenções com a peça e, assim, sutilmente desnuda as entrelinhas presentes no próprio nome.

Foi no Teatro Hermilo Borba Filho, quinta-feira, 28 de novembro, às 20h, onde pessoas estavam ansiosas, formando uma fila desajeitada na recepção, com expressões de curiosidade em relação aos sons que vinham na direção das portas fechadas do palco. Mas em um repente todo o barulho cessa, tanto da fila como o da direção do palco, portas se abrem, ingressos são conferidos e as pessoas vão lentamente entrando no local do espetáculo. O barulho ressurge, mas agora como efeito do contato entre espectadores e cenário, pois no caminho de entrada até os lugares havia lixo em abundância, garrafas plásticas de bebidas alcoólicas, latas de cerveja, papéis, coisas em decomposição, moedas, folhas… um verdadeiro estado das ruas de Recife e Olinda — e de tantos outros lugares pelo Brasil —, após qualquer festividade, em especial, o carnaval. A plateia toma seu devido lugar e depois de instantes, o espetáculo começa.

A criação/adaptação da Cia N.A.V.A. segue o mesmo caminho do romance usado como base. A história de uma família fragmanetada devido ao relacionamento mal construído entre o pai, Fiodor Karamazov, — um homem degenerado e amoral — e seus três filhos legítimos Dimitri, Ivan e Alex e o filho não legitimo criado como empregado na residência dos Karamazov. Os rumos do enredo se seguem entre a relação conturbada entre os familiares, demonstrando um forte e latente complexo edipiano, devido aos embates de pai e filho. A história avança e as complicações surgem a medida que a delicada relação familiar vai se ismiuçando. Há uma disputa constante, pelo amor de uma mulher, entre Dimitri e Fiodor; Ivan anda à beira da loucura devido a sua exarcebada busca pela razão; Alex sente-se constantemente isolado e tem sua fé testada por tudo ao seu redor; e o filho bastardo vive ignorado e repudiado pelos outros ao seu redor.

A adaptação teatral possui seu desfecho com o assassinato de Fiódor, o suicídio de um dos filhos, a acusação e condenação injusta de um dos filhos por matar seu pai, a loucura completa de outro e a solidão e quase descrença do Karamazov restante. Entretanto, como o próprio nome “adaptação” sugere, o enredo da teatralidade tem suas características próprias, ganhando elementos regionais como nomes de alguns personagens e o local onde a história se passa. Além disso, a dramaturgia ganha um tom anacrônico ao por suas cenas fora da ordem convencional, ao começar com a morte de Fiodor Karamazov e atravessar por cenas entre o começo, meio e fim numa ordem incomum, deixando alguns espectadores — desacostumados com esse formato narrativo —, confusos e expressando comentários como “Ele não estava morto agorinha?”.

Entretanto, além da história e adaptações, a trama por completo permanece com a costante inquietação sobre a moralidade e as reais razões para a existência humana. Tudo presente no palco e na plateia reflete as incontestáveis consequências das ações antropológicas no meio.

Fiodor, um homem amoral, vítima de seu próprio egoísmo, viciado em seus vícios e com medo das consequências; Dimitri, o maior juiz e carrasco de seu pai, mas não enxerga ser uma cópia dele, um completo hedonista; Ivan, escravo da razão, nega a existência de qualquer criatura mística/religiosa, diz que assim como Deus, o Diabo também não existe, mas vê em seu pai  o demônio de seus pensamentos niilistas; Alex, vítima da sua fé inabalável, perdido em uma inocência exagerada e talvez doentia que não lhe permite enxergar a dura realidade; o cenário, com seus lixos e objetos em decomposição, um reflexo de que o meio é resultado do homem que vive nele; outras personagens — em grande maioria mulheres —, senhoras de seus pecados-vontades e vítimas de uma sociedade patriarcal podre, arcaica e degenerada; e eu, hipocondríaco moral, me identificando com detalhes de cada personagem.

A peça choca e impacta a plateia a cada fala proferida, e quem sabe, se Deus ou deus ou deuses existirem, eles talvez também tenham estado em choque. Pois além das persistentes críticas à moralidade, uma das bases da moral e costumes na sociedade atual — além da pura conveniência econômica e social —, é questionada veementemente, e essa base é a ideia da religião e a existência de um/uns Deus/deus/deuses.

Um exemplo de argumento crítico, são as falas de Ivan em discussão com Alex, contra a existência do divino, que cita exemplos como o caso do  canibalismo que ocorreu em Pernambuco, quando coxinhas e empadas recheadas com carne humana foram vendidas, “Se Deus existe, por que ele permite isso?” e o caso de um casal que torturou e mutilou sua filhinha de cinco anos “Se Deus é bom e perfeito, por que ele permite isso?”

E além de todas as críticas feitas à sociedade, uma é manifestada e incorporada durante toda teatralidade, Alberto Oliveira, assumindo uma interpretação acertiva do papel de Fiodor Karamazov, também assume como a representação viva e onipresente de uma realidade patriacal degenerada e autodestrutiva que pesava na atmosfera, mesmo quando o Fiodor não estava em cena.

Ao final das aproximadas duas horas e trinta minutos de espetáculo, havia um mundo completamente novo e descortinado para quem assistiu “O Sujo Castigo Dos Irmãos Karamazov”. Um pensamento constante e inerente à irremediável condição humana estava plantado ali e uma nova condição de equilíbrio se estabelecia. Talvez não seja duvidar demais, crer demais, querer demais; talvez a plenitude da vida esteja em viver a vida não como se fosse o último dos dias, nem o primeiro de um futuro; talvez a vida seja um segundo de uma eternidade, e sabe-se lá quanto é isso, mas não há porque ir depressa ou devagar, crente ou desacreditado, basta ir.

ativador office 2019

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Paula
4 anos atrás

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Rose
4 anos atrás

Eita é isso aí. Parabéns a todos. Chegou a hora do começo. Vão em frente.

2020
4 anos atrás

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