Foto: Divulgação
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022
Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com a morte, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da curiosidade. Pagamos, pois, bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar.— Michel de Montaigne, em Os Ensaios
Para Montaigne, a humanidade e seus múltiplos processos de desenvolvimentos e relacionamentos, cada vez mais complexos, refletiam a grandiosidade e a grande miséria do homem e, nesse percurso de desenvolvimento, cada indivíduo passa por uma série de impulsos de vontades com consequências severas demais até que por um instante surja um facho resoluto de razão e lucidez. Pequenas criaturas que almejam a grandeza em sua pequenez.
Muito embora o filósofo, político e humanista francês tenha vivido no século XVI, suas concepções sobre a humanidade se manifestam contemporaneamente inquietantes e tangem as mais diversas áreas e eventos. Dentro os eventos que podem e fazem intersecção com os pensamentos de Montaigne, surge à luz dos palcos do teatro Hermilo Borba Filho, pela 10ª edição do festival Trema, o espetáculo Kalash — Ensaio Sobre a Extinção do Outro.
Com a direção e dramaturgia de Quiercles Santana, o espetáculo traça duras críticas e ironias sobre o hodierno caótico que nos circunda, a começar por seu título. O termo “Kalash”, utilizado no título, faz carinhosamente referência ao senhor Mikhail T. Kalashnikov, considerado como o homem mais letal do mundo, pois ele é o inventor do rifle de assalto Kalashnikov, muito conhecido como AK-47.
Simbolicamente, o grupo teatral fez uma escolha perspicaz ao escolher o termo para compor seu título, pois traz de imediato a figura da letalidade do homem, não só do inventor, mas de tantos outros homens letais espalhados pelo globo e história, inclusive figuras presidenciais. Nessa perspectiva assertiva, o espetáculo busca tecer duras críticas à realidade por meio de diferentes estruturas representativas.
Algo que marca o centro da teatralidade, além de sua criticidade, é o nítido e profundo gole nos estudos de Brecht e suas dramaturgias, pois é inegável a técnica das quebras brechtianas durante a apresentação. Contudo, algumas escolhas, por buscar tanto a didatização que Brecht buscava, acabam quase assumindo a visão de que os espectadores não são capazes de compreender o desenrolar das tramas e o explicar de determinadas escolhas para o espetáculo — perdão, como bem disseram, não se trata de um espetáculo, é um ensaio — assumem um tom marcado de falsa espontaneidade e empregam um tom cansativo.
Evidentemente, apesar de alguns pontos pecarem pelo excesso, Kalash é primoroso em inserir didaticamente o cientificismo das ciências humanas e sociais para o público, trazendo ideias linguístico-semióticas como as de Rolland Barthes e a criticidade pós-moderna do filósofo camaronês Achille Mbembe. O diálogo entre realidade, arte e estudos sociais acadêmicos é um ponto crucial no entrelace da proposta e é esse ponto que garante ao espetáculo sua coesão.
Entre a glória humana e a desgraça promovida pela glória humana, os prolegômenos de Kalash dialogam com Blaise Pascal, em sua obra “Pensamentos”, no ponto de que o pensador para a dualidade ontológica. A grandeza do homem consistindo, sobretudo, em sua capacidade de pensar e reconhecer a sua natureza e existência, elevando a si como o ser mais desenvolvido do universo; porém, em sua consciência sobre si e sua capacidade, cai sobre seu próprio ego e aos poucos arquiteta sua própria ruína.
E por trazer tal reflexão, o espetáculo é verborrágico. Paradoxalmente, a desgraça da humanidade consiste no aspecto puro e simples de que cada vez mais caminhamos para a representação coletiva e perfeita da figura de Narciso, mas a necessidade urgente de sermos mais narcísicos e falarmos sobre nós mesmos e é disso que se trata. Um espetáculo sobre o homem falando do homem.
Mas não apenas falando do homem, há de considerar as suas criações, os seus simbolismos, seus manuais axiológicos e a sobreposição da moral em relação à hepática ética. Dentre um diálogo coesivo de paletas de cores mais sombrias na iluminação, figurinos pulsantes como o sangue e recursos de imagem e vídeo perturbadores, quem dá a ordem e chama para perto, antes de mais nada, ainda é a palavra.
Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o Universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco.
— Blaise Pascal, em Pensamentos
É a palavra que salta entre as cenas e as quebras da quarta parede, é a palavra que grita entre os corpos dos artistas em cena, é a palavra que escancara o doente sistema capitalista em que vivemos; as articulações hegemônicas do poder; e as veias repletas de veneno, como a necropolítica, que se espalha entre as vigas e estruturas de espaços do legislativo, judiciário e executivo, até que injetam a peçonha através da canetada de um parlamentar, um acordo econômico ou uma bala “perdida”. É por meio dela, a palavra, que se reconhece os tempos distópicos em que vivemos e em como, mesmo a história sendo cíclica, ainda somos cegos, surdos e definitivamente mudos, mudos com uma palavra atravessada na garganta, mudos pela icônica e iconográfica palavra que saltou pelas vigas do teatro Hermilo Borba Filho através de Kalash e que se esparrama pelo chão, junto ao sangue de mais alguém morto pelo uso de uma Kalashnikov. BASTA!