Artistas do mundo, uni-vos | Crítica de Lugar Algum

por Vendo Teatro
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Foto: Gabriel Melo

Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Dezembro de 2021

Eu sonho mais alto que drones
Combustível do meu tipo? A fome
Pra arregaçar como um ciclone
Pra que amanhã não seja só um ontem
Com um novo nome
[…]
Na trama, tudo os drama turvo, eu sou um dramaturgo
Conclama a se afastar da lama, enquanto inflama o mundo
Sem melodrama, eu busco grana, isso é hosana em curso
Capulanas, catanas, buscar nirvana é o recurso
Emicida

Na música AmarElo, do rapper Emicida, há, antes de qualquer outro elemento, uma forte mensagem de resistência daqueles que tanto foram e são julgados, marginalizados, escanteados, vilanizados e esquecidos. AmarElo que dialoga diretamente com a música Sujeito de Sorte, de Belchior, traz à tona um grito entalado na garganta de tantos e carrega consigo os mesmos versos que a canção de 1976: Tenho  sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro. 

Ambas as canções, embora de anos distintos (2019 e 1976), dialogam perfeitamente e  são mais que atuais para o ano de 2021 e provável e infelizmente atuais para os anos que se seguirão. Seus versos retumbam como urros de alguém que supera mais um obstáculo na vida e declara que seguirá enfrentando os próximos, ainda que cansado e cambaleante.

Nesse sentido, as obras musicais tangenciam a temática abordada pela obra teatral do Grupo N.A.V.A, intitulada de Lugar Algum, a qual teve sua estreia no Teatro Hermilo Borba Filho, no dia 10/12/2021 às 19h. A teatralidade traz como roteiro uma realidade distópica após determinado evento que forçou um período de isolamento social em nível global e determinados movimentos sociais e políticos caóticos. 

A história apresentada em cena varia de personagens e cenários, sem que grandes alterações de figurinos ou luzes ocorram, pois esses elementos se apresentam não tão relevantes quanto os objetos cênicos usados e a construção da crítica filosófica e sociológica que é construída ao passar do tempo. Além disso, o elemento cenográfico está ali, exposto e escancarado, sem necessidade de demasiadas trocas de cenário ou grandes blackouts que possibilitem maior clareza da transitoriedade de tempo, pois a encenação é fluida, ainda que complexa em suas grandes passagens filosóficas e no caótico do gesto. 

Assim, como uma vela que se ascende em meio à escuridão, as luzes dos palcos do Hermilo Borba Filho despertam, trazendo à tona a luz-arte do grupo N.A.V.A que conta a história de um grupo de artistas — mais especificamente atores — que retornam às práticas após evento não-intitulado.  Dentro do processo dramatizado no palco, alguns pontos do universo apresentado chamam a atenção como: a precarização dos meios de trabalhos de um ator; a desvalorização do artista; o estereótipo engessado e cansativo sobre a profissão; a jornada de trabalho dupla de ator/atriz, considerando que o cachê dos palcos não é suficiente para sequer sobreviver e assim surge a necessidade de um segundo emprego — um brinde aos empregos massacrantes que pagam as contas e quase pagam os sonhos! —; e as dificuldades enfrentadas pela classe artística ao  existir sob uma política de ataques e massacres à arte

A trama apresentada nos palcos é naturalmente distópica. por apresentar características de uma realidade com condições de extrema opressão, desespero e privação, as quais levam os personagens a momentos de pura insanidade e desespero, como o instante em que um dos quatro membros no palco carrega uma arma de fogo em uma mão e uma bíblia em outra, enquanto fala, eloquentemente e de olhos vazios, reflexões saudosistas e desesperadas. Porém, seria tolice não compreender que o distópico nos palcos é nada mais e nada menos que a triste realidade hodierna mimetizada em um espetáculo, e antes de tudo, antes de ser um objeto artístico, a dramaturgia de Leandro Navarrete, interpretada por Baw Pernambuco, Marcelo Agra, Sabrina Pontual e Sofia Kozmhinsky é um grito de socorro exclamado por toda classe artística.

Lugar Algum é simulacro dramático que apresenta uma realidade regida por aqueles que possuem o dom da voz, isto é: a posse significativa de dinheiro; apresenta para a plateia de forma satírica e mastigada, em suas muitas quebras brechtianas, um espelho repleto de espinhos e com uma caveira militar. Dessa forma a obra revela suas intenções críticas quanto à realidade e faz referências a textos como o Soneto XII, de William Shakespeare, e Se Os Tubarões Fossem Homens, de Bertold Brecht.

Além disso tangencia conceitos como a reificação, a romantização e a alienação. Nesse sentido, poderíamos dizer que a reificação, conforme Marx, Thompson e outros tantos teóricos, seria o processo de objetificação das pessoas e de seus atributos, de modo que a sociedade passa a enxergar determinado indivíduo como uma coisa e com o tempo o próprio indivíduo esquece sua identidade e se acostuma ao processo de coisificação. Esse conceito converge quando a obra do grupo N.A.V.A apresenta o conformismo das personagens (atores e atrizes) com a realidade distópica que os cerca e o tratamento marginalizado que a política e a sociedade têm para com os artistas.

Somado a esse elemento, a romantização se manifesta através do elemento demonstrado nos palcos da precariedade existente na condição da existência das personagens e em como se considera essa precariedade distópica parte de um novo normal. Já o elemento da alienação é composto pela reificação, a romantização e tantos outros mecanismos presentes na luta de poder, em que os poderosos (tubarões) exercem sobre os marginalizados e os manipulados (peixinhos).

Em síntese, Lugar Algum, é uma distopia biográfica, repleta de entrelinhas que contemplam diversas mazelas sociais e políticas existentes no hodierno que se abatem sobre os mais variados grupos os quais têm sangrado demais e chorado pra cachorro. A obra, apesar de retratar a realidade da classe artística, retrata também, metaforicamente, a realidade de mais de 28 milhões de pessoas reais em que se cruza por qualquer rua a fora e o elemento da comédia presente na obra retrata a mais velha das realidades artísticas: a comédia não é o riso, mas o choro entalado na goela do povo. 

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