Foto: Luiza Palhares
Por Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2024
Eu, Luiz Diego Garcia Ubirajara, sou, inegável e inquestionavelmente, branco.
Dito isto, vamos à crítica do espetáculo Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar.
Participando da 30a edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, o espetáculo foi apresentado no Teatro Luiz Mendonça para uma plateia relativamente diminuta. O texto propõe uma reflexão ampla sobre as raízes históricas do Brasil, questionando como abordar o passado ao passo que confronta a sustentação dos pilares nacionais pela escravidão. A trama, centrada na figura de Anna Paes, uma portuguesa proprietária de um engenho em Pernambuco, busca desvendar sua vida por meio de documentos históricos. Além disso, o espetáculo destaca as complexidades éticas ao representar uma protagonista escravocrata do Brasil Colônia num contexto politizado atual, contexto este que se ramifica em profundas raízes teóricas, tanto quanto práticas, sobre posicionamentos do fazer artístico responsável sócio-historicamente acordado com a contemporaneidade.
A narrativa se desdobra de maneira extrema e quase unicamente metalinguística, com os atores vivenciando o ensaio de uma peça (ou até mesmo um filme) sobre Anna Paes. A montagem incorpora elementos como trilha sonora ao vivo, projeções de documentos históricos e imagens dos atores banhados por açúcar, explorando a dualidade entre ator e personagem; por vezes cansativamente reiterando a cena de forma a sublinhar visualmente o texto.
A dramaturgia, concebida por Marcos Damigo e Ermi Panzo, assume a forma de uma peça-ensaio-debate-performance sem nunca necessaricamente se estabelecer inteiramente como tal tecido maleável, mas também verborragicamente acaba ofuscando sua capacidade mutável processual, assim refletindo sobre como trazer essa história para a cena em meio ao atual contexto histórico brasileiro e à crítica decolonial se faz complexo, desafiador e também cansativo, laborioso.
Ao abordar a sinopse e o subtítulo provocativo, a encenação inicialmente explora a figura de Anna Paes, destacando sua relativa liberdade para os padrões da época. Contudo, as limitações éticas, políticas e artísticas surgem à medida que personagens negras questionam a representação unidimensional da protagonista como uma figura dita liberta. A dramaturgia tensiona esses debates genéricos e, em outros momentos, colabora para concretizar a proposta de “queimar os ‘engenhos de açúcar’ presentes em cada um”, conforme o objetivo declarado.
O espetáculo busca potencializar a compreensão das questões de colonialidade brasileira, racismo e privilégio branco, tentando não unicamente educar, conscientizar ou culpar – embora faça todos -, mas também explorar os vieses intrincados que constituem um fazer artístico anti, ou ao menos, menos racista. A abordagem performativa da história, nas conversas entre personagens, revela dados relevantes e associações inventivas, como a relação entre a monocultura do açúcar, escravidão e o surgimento do capitalismo no Brasil. A especulação sobre a subjetividade de Anna Paes é questionada por personagens negras, gerando reflexão não apenas ficcional, mas sobre a legitimidade de especular sobre a biografia de uma escravocrata. O espetáculo também explora lugares mais apararentemente sutis do racismo, especialmente por parte de artistas que se veem como antirracistas, mas evocam dessa premissa para corroborar com uma macro-estrutura de privilégios.
No atual contexto, em que a sociedade brasileira está mais sensível à compreensão crítica da escravidão e de suas repercussões, a instituição teatral se torna palco para criações que abordam tais problemáticas de maneira didática. Contudo, a complexidade da obra Babilônia Tropical reside na tentativa de lidar com essas questões, especialmente quando protagonizada por indivíduos que não experienciam diretamente a opressão racial. O espetáculo, ao performar polarizações e questionar o próprio contexto teatral, destaca-se como um dispositivo relevante para a reflexão sobre o racismo e o privilégio branco.
Em suma, “Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar” não apenas desenterra as raízes históricas do Brasil, mas também desafia a própria estrutura teatral, empurrando os limites do fazer artístico em meio a questões éticas e políticas. Ao confrontar a representação de uma protagonista escravocrata, a peça não apenas queima os engenhos de açúcar simbólicos, mas incendeia as concepções arraigadas sobre a narrativa nacional. Nesse palco incomodamente metalinguístico, onde a dualidade entre ator e personagem é dissolvida, somos instados a reconsiderar não só a história de Anna Paes, mas a nossa própria posição no intricado tabuleiro da colonialidade, racismo e privilégio. Em um Brasil contemporâneo que se vê confrontado com as sombras do passado, “Babilônia Tropical” emerge como um catalisador de reflexão, desafiando-nos – e desafiando-se – a confrontar os espectros históricos e a participar ativamente na desconstrução de privilégios arraigados.
“Babilônia Tropical” não é apenas teatro, nem se propõe como tal, o que talvez forge em si mesmo uma dúvida proposital fragilizadora, mas simultaneamente intrigante; é um chamado à ação, sem dúvida, um convite para que, como sociedade, queimemos as correntes invisíveis do passado, desafiando-nos a moldar um futuro mais justo, inclusivo e consciente.