Abismo Manso de Reminiscências | Crítica de Noite

por Vendo Teatro
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Foto: Morgana Narjara

Recife, Julho de 2024

Há pouco menos de um mês, eu tive um sonho. Meus avós maternos são de Paulista, Paraíba, duma cidade que tem menos de 15 mil habitantes, e fazia mais de três anos que eu não ia por lá. Sonhei com meus avós, principalmente com minha vovó Maria, e decidi – como há mais de década não fazia – passar meu aniversário por lá. Eu nunca tinha ido à Paulista sem mamãe, foi a primeira vez, dirigi, peguei ônibus, passei meu aniversário na casa de vovó, foi doce, familiar e maravilhosamente tenro estar em Paulista. O interior conhecido, sabido, vivido (mesmo que muito pouco, mesmo que só nas férias escolares da infância) carrega pra mim a singularidade de outro fuso horário. Recife está, para mim, sempre em agonia; funciona noutro ritmo. Em Paulista o tempo sentia-se diferente. Muita memória, muita gente perguntando de muita gente, muito amor e, naturalmente, muita fofoca. 

Essa atmosfera estava impregnada em mim ao chegar no Teatro Hermilo para assistir a “Noite”. O produtor executivo, Taveira Júnior, foi meu primeiro professor de teatro, abracei-o depois de tantos anos; tal vez, lá atrás, ele disse que eu daria um ótimo crítico de teatro, engraçado, acho que ele nem sabe disso, aqui estou, não sei se ótimo, mas aqui; eu estava emocionado, tinha um sentimo intenso de casa ali. No cenário, no teatro lotado, em ver tanta gente conhecida na platéia. A alquimia da Noite estava posta.

O espetáculo mergulha nas profundezas da memória através das vidas entrelaçadas de Mariana e Otília, duas irmãs idosas, interpretadas primorosamente por Zuleika Ferreira e Márcia Luz, confinadas no casarão decadente da família que foi transformado em uma espécie de museu familiar. Esse é o segundo espetáculo dirigido por Cláudio Lira ao qual assisto esse ano, “Quatro Luas” é uma poesia garcialorquiana irretocável no universo da infância; aqui Cláudio decide observar a infância (e também, claro, a vida) atráves das lentes da melhor idade: um mergulho poético no labirinto das relações familiares e do peso do passado. O cenário de um casarão transformado em museu, com seus objetos que contam histórias silenciosas, serve como um lembrete visual da efemeridade da vida e da persistência das memórias.

A narrativa desenrola-se em torno das irmãs e sua sobrinha enquanto lidam com o ressurgimento de memórias que foram soterrados ao longo do tempo. A morte recente de um casal nas águas próximas à casa e a busca por seus corpos servem como espelhos para as memórias das irmãs, catalisando uma reflexão sobre os valores, as escolhas e os amores que moldaram seus destinos.

As performances de Zuleika Ferreira e Márcia Luz são comoventes em sua profundidade e sutileza, capturando não apenas a fragilidade das personagens, mas também sua resiliência diante das adversidades da vida. A presença de Karinë Ordonio como a sobrinha que tece o fio do tempo entre gerações é um ponto de ancoragem crucial, oferecendo uma perspectiva contemporânea à narrativa permeada de nostalgia. Um aceno especial aqui ao mestre Marcondes Lima que assina os figurinos e a maquiagem do espetáculo. A Mariana de Zuleika Ferreira reverencia elegantemente o trabalho de Bette Davis em “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”. Que desempenho alquímico essa noite proporcionara.

O texto original de Ronaldo Correia de Brito, adaptado do conto “Noite” presente em “O Amor das Sombras”, é majestosamente transformado em Teatro, maiúsculo sim, Teatro, que captura a essência do conto enquanto expande suas possibilidades dramáticas. A direção sensível de Cláudio Lira aqui é também intimista e atmosférica, conduzindo o público através de um labirinto emocional onde o passado e o presente se entrelaçam em uma dança delicada de luz e sombra.

“Noite”, apesar de vibrante e muitíssimo profundo, tem uma qualidade que me levou a um fuso horário diferente: a peça é calma. Ela pede atenção e escuta. Passei, no tempo que estava em Paulista, ouvindo história de todo tipo de vovó e vovô sentados em cadeiras de balanço na frente de casa, convivendo com os vizinhos, os cachorros (os gato nem tão bem quistos assim) e com meus tios que estavam sempre de passagem. Calma. Aquele momento que você está escutando algo, sem grandes mirabolâncias, mas que muito diz de quem quer falar. Saber ouvir o que quer ser dito. Isso me interessava, as histórias, o tempo dilatado e sensível. E, principalmente, a calma. “Noite” poderia durar mais tempo que eu estaria ali, sentado no chão, ouvindo o que aquelas personagens quisessem me contar. 

Sensível, mosaica e calma, “Noite” não é apenas uma peça sobre o passado, mas também uma meditação sobre como as histórias familiares ecoam através das gerações. O espetáculo estabelece um resiliente baobá teatral que ressoa e vibra, convidando os presentes a explorar os labirintos da memória e a refletir sobre as escolhas que moldam o futuro a partir dos escombros do passado.

Vendo Teatro – Incentivo Funcultura 2022/2023
Proponente, coordenadora e criadora de conteúdo: Aline Lima
Produção Executiva: Sabrina Pontual
Críticos teatrais: Luiz Diego Garcia
Cleyton Nóbrega
Lucas Oliveira
Gabrielle Pires
Coordenador crítico: Luiz Diego Garcia
Jornalista: Paulo Ricardo Mendes
Designer Gráfico: Allan Martins

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