Categoria: Crítica

  • Canto Aos Esquecidos | Crítica de Solo Para Um Sertão Blues

    Canto Aos Esquecidos | Crítica de Solo Para Um Sertão Blues

    Foto: Divulgação

    Por Ananda Neres
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Janeiro 2021

    Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
    O primeiro ritmo que tornou pretos livres […]

    A partir de agora, considero tudo blues
    O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
    O funk é blues, o soul é blues¹

    Você conhece Moacir Santos? Robert Johnson? Jazz Band União Bodocoense?

    Tudo que quando era preto, era do demônio
    E depois virou branco e foi aceito
    Eu vou chamar de Blues¹

    Você conhece Tom Jobim? Elvis Presley? The Beatles? 

    Porque o samba nasceu lá na Bahia
    E se hoje ele é branco na poesia
    Se hoje ele é branco na poesia
    Ele é negro demais no coração²

    Criado a partir da obra “Solo para Vialejo”, de Cida Pedrosa, o musical “Solo para um sertão blues”, com direção de Claudio Lira, integrou a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos (2022).

    Em cena, quatro mulheres negras migram. Movimentos. O primeiro deles através do Atlântico colonial. Diáspora. Em terra Brasilis, novo movimento. Do mar ao sertão. Para esta viagem pedem a proteção dos orixás.

     Sertão

    Sertões

    Em busca de si e do outro.

    No destino, encontramos com as personagens de Bodocó, mulheres catadoras de algodão, mães e filhas, fiéis que cantam nas igrejas, as jazz bands… Mas quem eram essas pessoas? Quais os seus nomes? Para além do estereótipo, quem são os sertanejos?

    As músicas do espetáculo não são só como “o fio que conduz as miçangas vistosas e coloridas”4, as melodias – interpretadas ao vivo por Douglas Duan e Arnaldo do Monte – são marcantes. Anunciavam e transportavam por sensações paradoxalmente longínquas e contemporâneas. Duan, que assina a criação e direção musical, mostra uma nova face, parece, ao fim, ter encontrado o espaço para fazer sua música brilhar, espaço encurtado ou muito pontual em trabalhos anteriores. 

    O musical faz reverência à música e aos músicos. Há na música de Duan um imbricamento de ritmos e estilos, que remetem a elaborações negras de berço, como o samba, o jazz e o blues. Mas além disso, territorializa o diálogo ao trazer elementos de ritmos pernambucanos, o que amplia a percepção da problemática do apagamento dessas figuras. Quem são os mestres de maracatu, de forró, de frevo? Quais seus nomes? 

    Na adaptação do poema para a dramaturgia, elementos da cultura afrobrasileira não presentes na obra originária integram o espetáculo, como a referência aos orixás ou a licença poética para modificar o verso. Para ilustrar, trago uma fala do fim do épico de Pedrosa:

    “[…] me encontro e te encontro no som para encontrar deus na esquina e o diabo na encruzilhada”³

    Contudo, na boca de Fernanda Spíndola, o poema se faz “me encontro e te encontro no som para encontrar deus na esquina e exu na encruzilhada”. O nome do orixá é verbalmente destacado. Pode parecer à primeira vista uma modificação desimportante, talvez passe até despercebida, mas, ao realizá-la, a atriz marca o lugar de que se fala. Afinal, Exu é uma das divindades mais atacadas pelas religiões cristãs. Literalmente demonizado. Assumir essa fala é afirmar uma posição de defesa do que foi negado. É saber-se negro, coisa que Bodocó não sabe e que Cida não é.

    Brunna Martins, Fernanda Spíndola, Jhanaína Gomes e Célia Regina revezam-se para cantar esta história. E a cantam sem microfone, fato que em nada prejudica a recepção. O espaço reduzido do Teatro do Hermilo Borba Filho e a projeção vocal das atrizes dão conta do recado.

    Aqui destaco a atuação magnetizante de Célia Regina que não só preenche com sua  presença todos os espaços do palco, mas também, por parecer trazer na voz a aridez do sertão. A força da natureza. 

    Solo para um sertão blues nos convoca a redescobrir os sertões.

  • A comunidade do bode na cena teatral pernambucana | Crítica de Barbarize Aquilombando no Transborda

    A comunidade do bode na cena teatral pernambucana | Crítica de Barbarize Aquilombando no Transborda

    Foto: Juliabe Balbino

    Por Cleyton Nóbrega
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Janeiro 2021

    Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar.
    Chico Science

    Durante muito tempo fiquei pensando sobre como era bom voltar ao teatro depois de tanto tempo em casa durante a pandemia. Não via a hora de poder apreciar algum trabalho. Felizmente, tive a oportunidade de assistir um espetáculo que fez parte  da Mostra Transborda as Linguagens da Cena-SESC, que aconteceu no palco do teatro Marco Camarotti no bairro de Santo Amaro, Recife. 

    Quilombos são lugares de fortalecimento e de aprendizagem, existem quilombos na atualidade que se destacam aqui em Pernambuco como o Quilombo Do Catucá em Camaragibe-PE, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas em Salgueiro-PE, e tantos outros. Esses espaços assumiram, no decorrer da construção de uma identidade nacional e de evolução das comunidades pretas, a melhora de vida, a importância das relações comunitárias e de aspectos que estão relacionados com a luta contra o racismo sistêmico e estrutural que vivenciamos no país. 

    Segundo o dicionário, o termo aquilombar é o mesmo que reunir e está, a meu ver, foi a intenção de criação do espetáculo “Barbarize Aquilombando no Transborda”, com Direção de Foster, que é encabeçado pela dupla Bárbara Espíndola e YuriLumin, artistas e divulgadores de um estilo que mescla elementos do rap, hip hop, a musicalidade africana e também o funk nacional. O duo e o coletivo demonstram não ter medo de experimentar, e tecem uma relação muito proveitosa com a linguagem cênica.

    A peça de teatro-musical utiliza-se de elementos que dialogam com diversos campos artísticos, por exemplo, moda, performance, poesia e dança. De fato, funcionou bem construir relações com esses elementos, o ritmo da encenação é muito bom, os atores em cena falavam diretamente com o público, quebrando a quarta parede e inserindo na dinâmica da peça as respostas dadas pelo público funcionando como motes para as situações que aconteciam durante a encenação. A interação que foi construída com o público nos colocava como parte da encenação, pois os atores interagiam com as pessoas e traziam palavras ou situações que foram explanadas por esse público na encenação, os atores souberam ter um bom jogo de cintura e improvisaram muito bem, foi uma escolha de encenação que realmente funcionou, dando um ar jovial e interativo à peça.

    A iluminação estava muito afinada e ajudava na composição dos cenários, criando uma atmosfera real, mas ao mesmo tempo parecia um mundo de sonhos. As cores azul, lilás, vermelho e amarelo, eram predominantes na encenação, o que ajudou em diversos momentos a entender o sentido que as cenas construíram junto com as músicas.  A mistura entre o real e o imaginário, o teatro tratado como meio de se falar sobre as problemáticas da vivência. As músicas do duo se misturavam às cenas curtas e tiveram um início, meio e fim. O que me ajudou a não me sentir perdido em meio às informações que eram lançadas.

    Vale pontuar que a projeção vocal de alguns dos atores, algumas palavras ditas durante as cenas curtas não ficaram muito audíveis do fundo do teatro. O espetáculo configurava-se em apresentações destas cenas curtas e na apresentação/encenação dos clipes posteriormente. Sendo todo o trabalho de canto e dança feito ao vivo. 

    Esteticamente os adereços cênicos e figurino belíssimo da Patrícia Souza, maximizaram a potência do trabalho, que toca sobretudo nas relações dos corpos pretos, periféricos e a vida na modernidade. Evidenciamos em cena as problemáticas que tantas pessoas pretas e outras minorias passam no decorrer da vida.  Espetáculos que consigam dialogar de maneira tão compromissada e forte com esses aspectos político-sociais devem ser valorados, aprimorados e divulgados.

    A cena final que traz a protagonista do espetáculo em um monólogo falando abertamente ao público sobre as instâncias de experiência de vida que uma mulher preta passa no decorrer da vida, arrepiam, nos faz refletir, emocionou demais. Me fez refletir sobre as minhas próprias experiências de vida enquanto um homem negro e nordestino. Era o que faltava, esse monólogo se fez bastante necessário para uma compreensão mais aprofundada sobre o espetáculo “Barbarize Aquilombando no Transborda”, comunicando, fazendo refletir sobre os lugares que corpos negros ocupam na sociedade brasileira, e também sobre a validação de de discursos e locais de fala, fiquei refletindo sobre a violência sistêmica relacionadas aos corpos pretos e sobre o lugar que pessoas como eu ocupam na sociedade, ver uma peça em que a maioria das pessoas que compounham o espetáculo são negras e periféricas tendo voz e se impondo no mundo por intyermédio da arte. Algo que termina nos tirando do lugar comum. 

    Como é bom ir ao teatro. O que essa arte tem de tão mágico que nos embriaga? Nos leva? Nos move? Com muita empolgação e palmas, o espetáculo se encerrou e trouxe o preto para o lugar do empoderamento, da beleza, força e resistência. Espetáculos nessa conjuntura são necessários, pois no coloca a pensar o outro por meio de outras perspectivas, assim podemos entender melhor sobre os problemas e vida do outro refletindo sobre os nossos próprios problemas e relações com o mundo, lidar com o novo, o diferente, e evoluir nossas visões e relações no mundo conosco e com o outro. O sabor do novo, quando é bom, é inesquecível.

  • Artistas do mundo, uni-vos | Crítica de Lugar Algum

    Artistas do mundo, uni-vos | Crítica de Lugar Algum

    Foto: Gabriel Melo

    Por Matheus Campos
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Dezembro de 2021

    Eu sonho mais alto que drones
    Combustível do meu tipo? A fome
    Pra arregaçar como um ciclone
    Pra que amanhã não seja só um ontem
    Com um novo nome
    […]
    Na trama, tudo os drama turvo, eu sou um dramaturgo
    Conclama a se afastar da lama, enquanto inflama o mundo
    Sem melodrama, eu busco grana, isso é hosana em curso
    Capulanas, catanas, buscar nirvana é o recurso
    Emicida

    Na música AmarElo, do rapper Emicida, há, antes de qualquer outro elemento, uma forte mensagem de resistência daqueles que tanto foram e são julgados, marginalizados, escanteados, vilanizados e esquecidos. AmarElo que dialoga diretamente com a música Sujeito de Sorte, de Belchior, traz à tona um grito entalado na garganta de tantos e carrega consigo os mesmos versos que a canção de 1976: Tenho  sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro. 

    Ambas as canções, embora de anos distintos (2019 e 1976), dialogam perfeitamente e  são mais que atuais para o ano de 2021 e provável e infelizmente atuais para os anos que se seguirão. Seus versos retumbam como urros de alguém que supera mais um obstáculo na vida e declara que seguirá enfrentando os próximos, ainda que cansado e cambaleante.

    Nesse sentido, as obras musicais tangenciam a temática abordada pela obra teatral do Grupo N.A.V.A, intitulada de Lugar Algum, a qual teve sua estreia no Teatro Hermilo Borba Filho, no dia 10/12/2021 às 19h. A teatralidade traz como roteiro uma realidade distópica após determinado evento que forçou um período de isolamento social em nível global e determinados movimentos sociais e políticos caóticos. 

    A história apresentada em cena varia de personagens e cenários, sem que grandes alterações de figurinos ou luzes ocorram, pois esses elementos se apresentam não tão relevantes quanto os objetos cênicos usados e a construção da crítica filosófica e sociológica que é construída ao passar do tempo. Além disso, o elemento cenográfico está ali, exposto e escancarado, sem necessidade de demasiadas trocas de cenário ou grandes blackouts que possibilitem maior clareza da transitoriedade de tempo, pois a encenação é fluida, ainda que complexa em suas grandes passagens filosóficas e no caótico do gesto. 

    Assim, como uma vela que se ascende em meio à escuridão, as luzes dos palcos do Hermilo Borba Filho despertam, trazendo à tona a luz-arte do grupo N.A.V.A que conta a história de um grupo de artistas — mais especificamente atores — que retornam às práticas após evento não-intitulado.  Dentro do processo dramatizado no palco, alguns pontos do universo apresentado chamam a atenção como: a precarização dos meios de trabalhos de um ator; a desvalorização do artista; o estereótipo engessado e cansativo sobre a profissão; a jornada de trabalho dupla de ator/atriz, considerando que o cachê dos palcos não é suficiente para sequer sobreviver e assim surge a necessidade de um segundo emprego — um brinde aos empregos massacrantes que pagam as contas e quase pagam os sonhos! —; e as dificuldades enfrentadas pela classe artística ao  existir sob uma política de ataques e massacres à arte

    A trama apresentada nos palcos é naturalmente distópica. por apresentar características de uma realidade com condições de extrema opressão, desespero e privação, as quais levam os personagens a momentos de pura insanidade e desespero, como o instante em que um dos quatro membros no palco carrega uma arma de fogo em uma mão e uma bíblia em outra, enquanto fala, eloquentemente e de olhos vazios, reflexões saudosistas e desesperadas. Porém, seria tolice não compreender que o distópico nos palcos é nada mais e nada menos que a triste realidade hodierna mimetizada em um espetáculo, e antes de tudo, antes de ser um objeto artístico, a dramaturgia de Leandro Navarrete, interpretada por Baw Pernambuco, Marcelo Agra, Sabrina Pontual e Sofia Kozmhinsky é um grito de socorro exclamado por toda classe artística.

    Lugar Algum é simulacro dramático que apresenta uma realidade regida por aqueles que possuem o dom da voz, isto é: a posse significativa de dinheiro; apresenta para a plateia de forma satírica e mastigada, em suas muitas quebras brechtianas, um espelho repleto de espinhos e com uma caveira militar. Dessa forma a obra revela suas intenções críticas quanto à realidade e faz referências a textos como o Soneto XII, de William Shakespeare, e Se Os Tubarões Fossem Homens, de Bertold Brecht.

    Além disso tangencia conceitos como a reificação, a romantização e a alienação. Nesse sentido, poderíamos dizer que a reificação, conforme Marx, Thompson e outros tantos teóricos, seria o processo de objetificação das pessoas e de seus atributos, de modo que a sociedade passa a enxergar determinado indivíduo como uma coisa e com o tempo o próprio indivíduo esquece sua identidade e se acostuma ao processo de coisificação. Esse conceito converge quando a obra do grupo N.A.V.A apresenta o conformismo das personagens (atores e atrizes) com a realidade distópica que os cerca e o tratamento marginalizado que a política e a sociedade têm para com os artistas.

    Somado a esse elemento, a romantização se manifesta através do elemento demonstrado nos palcos da precariedade existente na condição da existência das personagens e em como se considera essa precariedade distópica parte de um novo normal. Já o elemento da alienação é composto pela reificação, a romantização e tantos outros mecanismos presentes na luta de poder, em que os poderosos (tubarões) exercem sobre os marginalizados e os manipulados (peixinhos).

    Em síntese, Lugar Algum, é uma distopia biográfica, repleta de entrelinhas que contemplam diversas mazelas sociais e políticas existentes no hodierno que se abatem sobre os mais variados grupos os quais têm sangrado demais e chorado pra cachorro. A obra, apesar de retratar a realidade da classe artística, retrata também, metaforicamente, a realidade de mais de 28 milhões de pessoas reais em que se cruza por qualquer rua a fora e o elemento da comédia presente na obra retrata a mais velha das realidades artísticas: a comédia não é o riso, mas o choro entalado na goela do povo. 

  • Teatro Catequético Boomer | Crítica de O Vendedor de Sonhos

    Teatro Catequético Boomer | Crítica de O Vendedor de Sonhos

    Foto: Gilberto Rosa

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Novembro de 2021

    1550.

    A história do teatro em solo brasileiro começa quando a colonização portuguesa estava nos seus primeiros anos; os jesuítas chegaram ao Brasil tendo como uma de suas funções catequizar a população indígina originária brasileira. Segundo o artigo intitulado O Teatro Jesuítico na Europa e no Brasil no Século XVI “no Brasil o objetivo central era catequizar os nativos, projeto civilizador ligado a um projeto maior: a colonização portuguesa. Não era a erudição a preocupação do padre José de Anchieta ao escrever suas peças de teatro, mas sim atingir os índios com a mensagem cristã.” Diga-se de passagem, massacrando assim as crenças dos nativos e impregnando-lhes com uma cultura eurocêntrica dominadora e seus valores opressores.

    2021. 

    A adaptação para os palcos de O Vendedor de Sonhos, obra homônima de Augusto Cury, vendido mundialmente e traduzido para dezenas de idiomas, fora apresentada no Teatro Riomar às 21h. O espetáculo conta com uma produção sudestina e é dirigido por Cristiane Natale, que junto ao próprio Cury e a Erikah Barbin assinam o texto para o teatro. Na trama, o personagem Júlio César tenta suicídio, mas é impedido de cometer o ato por um senhor em situação de rua, o dito “Mestre”, que lhe vende uma vírgula (ao invés de um ponto final), para que continue a escrever a sua história. Juntos encontram Bartolomeu, um alcoolista também em situação de rua que decide juntar-se a eles na missão de vender sonhos.

    1550/2021.

    Numa proposição liberal-capitalista que se inicia já pelo título da obra, a trama segue seu curso de irresponsabilidades sociais ao longo dos seus morosos 90 minutos. Passando por um descuido com temas sensíveis como o suicídio, numa cena exdrúxula em que o Mestre usa de um discurso similar ao meme “pare de ter depressão” e tudo muda como num passe de mágica na outra personagem, sem levar em conta a complexidade da temática e a multifatoriedade da doença. Ainda de forma leviana, há uma tentativa de humor com uma cena de assédio contra uma mulher, que apenas passa como brincadeira, um personagem tenta beijar a moça “acidentalmente”. Não há espaço para relevar tais cenas inconsequentes. 

    Numa tentativa de filosofar sobre os tempos atuais, o texto de Cury tropeça em si mesmo ao colocar a humanidade de frente a si em sua ação individual, e não coletiva. O ser humano de Cury é responsável pelo caos do mundo enquanto indivíduo subjetivo e singular. Como se o problema climático, por exemplo, fosse causado pelo uso do chuveiro elétrico de fulano, ou pela vez que ciclano esqueceu a luz da sala acesa; e não porque existe um capitalismo desenfreado e que o agronegócio é de fato responsável pela maioria do uso de água potável do planeta.

    Na continuidade da trama, há ainda um desenho de uma filosofia rasa sobre a existência humana em sociedade, que mais uma vez é abordada na peça de forma incoerente. Há uma romantização de pessoas em situação de rua; como se nelas houvesse pureza de valores a serem alcançados e almejados, visto que as mesmas não têm bens materiais que pudessem, como no texto, estragar as suas essências. Nesses atos ofensivos de flertes com uma meritocracia de valores, O Vendedor de Sonhos passa por uma horizontalidade imensa na sua proposta. Um espetáculo moralista, catequético e em desalinho com o cuidado à vida que tanto busca pregar. 

    O elenco enxuto encontra respiro no carisma de Adriano Merlini para tentar balancear as longas cenas de diálogos monótonos. Também valem-se do talento de Luiz Amorim enquanto navegam as tortuosas águas do texto dito. Mas no todo, mesmo esforçado, o texto na boca dos atores não vinga. Com um cenário sendo composto apenas por um imenso painel amassado que alude a uma grande metrópole, tal simplicidade de elementos cênicos dá espaço para preenchimento pelo elenco e texto; que aqui, infelizmente, ocupa o vazio com formas-conteúdo díspares e problemáticas.

    Terminando a apresentação com um número de pessoas menor na platéia do que o que começou, o trabalho dos vendedores de sonho aqui não se distancia muito dos seculares jesuítas na catequese moralista doutrinadora de culpas. 

  • Quem imaginaria que um capitão faria tanto estrago? | Crítica de Ubu Rei ou a Revolta dos Coadjuvantes

    Quem imaginaria que um capitão faria tanto estrago? | Crítica de Ubu Rei ou a Revolta dos Coadjuvantes

    Foto: Juliabe Balbino

    Por Ananda Neres
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Outubro de 2021

    Era uma vez um lugar no qual o líder sofreu um golpe de estado dado por um capitão. Este militar assume o poder e é responsável direto pela morte de milhares de pessoas deste lugar. Não bastasse, busca impor impostos cada vez mais altos e uma condição de vida miserável à população, que toma como inimiga.

    Talvez você tenha imaginado que falo do Brasil de 2021, mas falo de Alíquota, país fictício no qual se desenrolam os acontecimentos de Ubu Rei ou a revolta dos coadjuvantes, espetáculo do Teatro Bissexto. Com temporada financiada pelo FUNCULTURA, o Teatro Bissexto (com direção de Carlos Lima) apresentou uma adaptação do texto de Alfred Jerry de sexta a domingo durante as três últimas semanas de outubro. A sessão virtual é realizada ao vivo e apresentada simultaneamente nas plataformas Zoom Meetings e Youtube, aumentando a acessibilidade ao espetáculo. 

    Ainda em contexto pandêmico, os atores estão cada um em sua janela, cada um em sua casa. Fato que não impede que as personagens estejam no mesmo ambiente. Para isso, há uma preocupação em simular o mesmo local nas diferentes telas a partir do uso de iluminações análogas ou do mesmo fundo de tela, o que dá coerência às imagens apresentadas. Além disso, ao nomearem as telas, utilizam esse recurso para brincar com os nomes das personagens, tudo muito divertido.

    Utilizando-se da bufonaria, as personagens ao exagerarem, satirizarem e parodiarem as situações e a si próprios revelam mazelas sociais e relacionam-se diretamente com a política nacional brasileira. São exemplos disso, referências ao absurdo powerpoint de Deltan Dallagnol, parte do processo que culminou no golpe eleitoral de 2018; às lives grotescas do excelentíssimo presidente da república ou mesmo às Leis de Incentivo. Não resumindo-se a esses aspectos, o exagero ainda está presente, como esperado, nos corpos dessas figuras. Os figurinos, assinados por Fábio Caio, são visualmente impressionantes, construídos aparentemente de espuma, eles hiperbolizam os órgãos genitais seja pelo excesso ou pela falta e constroem uma camada a mais nas personagens, mesmo que o corpo nunca seja o foco.

    A história dos golpes acontecidos em Alíquota é contada através de depoimentos das personagens, quase como relatos policialescos com voz alterada ou mesmo documentários. A construção do espetáculo ocorre por meio de cenas curtas em sequência, o que dá um aspecto fragmentado à apresentação. Além disso, a apresentação realiza-se em breves 35 minutos. A sensação ao fim é que não vimos o suficiente dessas figuras tão particulares.

    De forma leve e despretensiosa, o Teatro Bissexto diverte ao passo que critica, aponta aquilo que nos recusamos a ver. Afinal, rir é uma arma poderosa, rir de si e da própria desgraça mais ainda. Satirizar a miséria na qual nos encontramos é uma forma de entender e modificar a realidade. 

  • Dialogismo dos Corpos | Crítíca de GALA

    Dialogismo dos Corpos | Crítíca de GALA

    Foto: Divulgação

    Por Matheus Campos
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Outubro de 2021

    Sempre, ou quase sempre, que contemplamos uma expressão artística, acabamos entrando em uma máquina do tempo e cruzamos as eras, passeando entre tempos mais próximos ao nosso e tempos mais longínquos como os daqueles que viveram no período clássico. Essa viagem ocorre pois o que há de moderno bebe completamente de um movimento anterior, que bebeu do outro movimento anterior… até chegar na matriz, nas expressões artísticas mais antigas. 

    Por esse viés, na primeira terça-feira do mês de outubro de 2021, 05/10/2021, fui transportado ao período da antiguidade através do espetáculo de dança internacionalmente conhecido: GALA, de Jérôme Bel, no Teatro Luiz Mendonça, pelo 30º FETEAG. Além de contemplar uma das três artes cênicas centrais da antiguidade, a dança, o espetáculo contempla o cerne da  arte cênica em questão por meio de seu experimentalismo e por isso há a impressão sensível de viagem temporal.

    GALA traz consigo o conceito do experimentalismo na dança por meio da simplicidade dos movimentos, em verdade, a montagem artística de Bel remonta ao conceito básico e chave por trás do termo “dança”, que é a arte de movimentar o corpo expressivamente e em ritmo. E eis o pièce de résistance da obra, trazer a simplicidade do movimento ritmado que não está atrelado à condição urgente da existência de uma coreografia compassada; de uma música; de um estilo; ou de movimentos “assertivos” determinados por outrem. A dança é exposta em sua forma pura pelos bailarinos profissionais e amadores, apresentando no palco um movimento expressivo ritmado, conforme cada corpo e história permite. 

    Somado a esse elemento técnico de como ocorrem as danças no palco, o espetáculo brinca com o seu próprio título para promover a estética existente. Na palavra “gala”, dentre seus muitos significados, podemos encontrar: júbilo, alegria, pompa, festividade, solenidade, ostentação e traje para atos solenes. Porém, quando pensamos na palavra em questão, imediatamente a imagem e o conceito de uma festividade pomposa vêm à mente e é nesse instante que surge a brincadeira com o termo e a estética, GALA assume o seu significado de festividade entre um grupo, no palco, prezando pelo avesso da pomposidade e ostentação; e primando pela simplicidade em cada detalhe, da iluminação aos figurinos e danças.

    A apresentação remete, dentre tantas coisas a se remeter, a um trecho específico do livro Sombras da Água, de Mia Couto e recitado por Maria Bethânia em sua versão de A Flor e o Espinho, de Nelson Cavaquinho. 

    A música é a língua materna de Deus
    Foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam
    Que em África, os deuses dançam
    E todos cometeram o mesmo erro
    Proibiram os tambores
    (…)

    Dentre as possíveis inferências do trecho acima, há o elemento chave: dança é comunicação, música é comunicação, arte é comunicação; enquanto “a música é a língua materna de Deus”, a dança é a linguagem que os deuses “em África” exercem, mas ouso dizer que não só os deuses a fazem, nós mortais também dançamos e nos comunicamos. Dançar é, primariamente, comunicar-se. Cada passo, dedo erguido, ritmo, estilo, plano explorado, composição corporal, suor derramado… comunica algo sobre aquele indivíduo e seu corpo. 

    Nesse sentido é que se situa o espetáculo pensado por Jérôme Bel, com assistência de Maxime Kurvers e assistido e reencenado por Francini Barros, Marianne Consentino e Henrique Neves, com a participação de um elenco gigantesco e plural. São corpos pertencentes a indivíduos de diversas idades, múltiplos gêneros, plurais etnias, e variadas histórias que comunicam ao público um pouco sobre si, conforme os ritmos expostos, em uma grande caixa aberta e iluminada.

    Dentre os atos da apresentação, há o momento inicial, absorto em silêncio com uma apresentação singela de slides ocorrendo, nesses slides surgem imagens de variados teatros e de início surge um estranhamento com tamanho silêncio e monotonia da apresentação de fotografias. Esse primeiro momento traz a dúvida ao público se realmente está assistindo a apresentação correta, é um instante quase anticlimático, mas coeso quando o todo é observado. 

    O instante anticlimático da apresentação, após a contemplação do espetáculo por completo da obra, é possível de ser compreendido sob algumas óticas e dentre essas óticas, encontro a que descortina mais um elemento importante sobre o conceito do espetáculo. A singela e cansativa apresentação de slides aponta para a simplicidade no now existente nos espetáculos cênicos, de forma que  independe do espaço para que ocorra o espetáculo, basta haver um público e um artista que a comunicação está estabelecida e a arte concreta em seu ciclo.

    Portanto, GALA, que dispensa as pomposidades, não seria diferente. As cenas ocorrem com figurinos simples, mas de cores fortes; bailarinos profissionais e amadores; uma iluminação simples, bastando uma forte luz branca para se enxergar o que ocorria no palco; e o público, essencial para que tudo ocorresse. Dentre o passar dos atos do espetáculo, vários estilos musicais foram contemplados pelos diferentes corpos e ritmos particulares dos bailarinos, dentre os estilos musicais estavam: o pop, o instrumental clássico de cordas e sopro, o bolero, o jazz, o ijexá — ritmo oriundo da Nigéria e incorporado a ritmos como o afoxé —, o funk, o coco e o xaxado. Cada um, como já escrito algumas vezes, dançado por cada ator conforme seu corpo e interpretações. 

    A obra por completa é divertidíssima, tanto para quem assiste, como para quem está vivenciando ela de dentro, no palco. É possível ver como os artistas na caixa iluminada se divertem e se emocionam, conforme passam os estilos musicais e ritmos. Além disso, não há espaço para julgamentos e avaliações tecnicistas sobre os corpos em cena, pois o palco é um reflexo de duas verdades quase esquecidas. A primeira verdade é que dançar pertence a uma condição natural e cada indivíduo possui o seu modo; enquanto coreografias e técnicas rítmicas são artificiais. A segunda verdade está contida na primeira, pois se dançar é natural, todo corpo dança, porque se há um movimento ritmado e com intenção, há nessa ação os princípios básicos de uma dança. 

    Por essa ótica, alguns ritmos são trazidos pelo espetáculo como o ballet, o foxtrot, a valsa… mas três momentos específicos merecem o devido destaque. O primeiro momento é o ritmo intitulado como “Michael Jackson”, os bailarinos representam, aos seus modos particulares, o famoso Moonwalk e outros passos de dança característicos do falecido rei do pop, o que é curioso, pois o estilo de dança dele era o popping — estilo pertencente ao funk original, também usado pelo James Brown (ícone do funk) —; porém, claro, essa forma de dança foi traduzido e interpretada ao estilo Jackson, o que proporcionou a interessantíssima brincadeira/verdade de haver um ritmo a la Michael Jackson.

    O segundo momento que  recebe a atenção é o curioso ritmo “Agradecimentos”, conforme a apresentação desvela para o público, há uma perspectiva cênica e rítmica em momentos de agradecimentos, principalmente quando os agradecimentos provêm de quem está em cima do palco. Por fim, o último momento o qual dirijo a atenção é para o ritmo “Companhia Companhia” que se opõe ao termo e estilo “Solo”, pois nesse instante os indivíduos em cena seguem o ritmo de um bailarino — profissional ou não — que toma a frente, executando passos de dança a sua escolha, conforme a música que elegeu, enquanto os demais copiam os movimentos que esse “bailarino-mestre” executa.

    O posto de “bailarino-mestre” varia entre os integrantes do grupo e o espetáculo alcança seu momento mais belo, quando John Lopes desce de sua cadeira de rodas e executa a sua dança, à sua maneira, enquanto toca Spirit, interpretada pela Beyonce, e os demais seguem seu ritmo e passos. Esse momento além de quebrar preconceitos tão arraigados em nossa sociedade capacitista, levanta a imortal bandeira que é de todos, feita por todos e para todos.

    Mais alguns instantes se passam e outras danças tão belas e importantes são executadas, deixando no espectador, após aproximados 65min de espetáculo, uma sensação de leveza e de amor próprio para com seu corpo e seus movimentos. Assim, GALA, por meio de sua simplicidade visual e sua complexidade teórica e ideológica, ocupa seu espaço de obra artística indispensável, principalmente dados os contextos atuais, ao provocar no espectador o senso crítico em relação à liberdade dos corpos e suas formas particulares de ser e de se expressar.

  • Ludicidades Melódicas do Porvir | Crítica de Jeremias e as Caraminholas

    Ludicidades Melódicas do Porvir | Crítica de Jeremias e as Caraminholas

    Foto: Priscila Liberal

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Setembro de 2021

    “A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo.”, diz Mário Quintana.

    Alexsandro Souto Maior, escritor pernambucano, eternizou suas saudades há dez anos atrás, em uma homenagem ao seu avô José Maria, na dramaturgia para infância e juventude Jeremias e as Caraminholas que conta a história de um certo Jeremias, adulto e criança, e sua relação com o Tempo, família e com a arte da escrita de memórias. A montagem encenada por Rodrigo Hermínio, do grupo Teatro do Amanhã, acerta em cheio o tom acalante do texto num trabalho delicado, gentil e reflexivo.

    Jeremias Adulto, vivido pelo firme e doce Anderson Macário, nos apresenta sua história e sua relação com suas memórias, conta sobre seu avô relojoeiro e sobre seu amor pela escrita num palco com pouca indumentária. Então, somos levados por um sopro de tempo, chegando a esse passado-presente de Jeremias Jovem e a história se desenrola nessas idas e vindas, sempre com adições bem humoradas dos comentários do Jeremias Adulto de Macário, que entra em cena como um comentarista de si, sabendo-se também repetitivo; mas a história é dele, e as palavras também. 

    Vivendo Jeremias Jovem, Gabriel Cabral entrega um trabalho vibrante e crível em seus maneirismos e entonações, seu Jeremias é adorável, principalmente em contraste com sua mãe, aqui Sofia Kozmhinsky, que apesar de pouco flexível e endurecida pela realidade, tenta ser compreensiva com a relação lúdica entre seu filho e seu pai; mas é no enredo que envolve o seu Avô Relojoeiro que se encontra o cerne de Jeremias e as Caraminholas. Zé Lucas Bastos entrega uma performance precisa sem emular uma caricata velhice, a pouca idade do ator é escondida por uma maquiagem (assinada por Gabriela Oliveira, Sofia Kozmhinsky e Gabriel Cabral) bem definida, só que é no trabalho de corpo de Bastos que esse avô toma forma, um senhor relojoeiro altivo e impetuoso, também cheio de afetos em suas fragilidades. Mantendo-se em cena durante boa parte do espetáculo, Zé Lucas Bastos está sempre em movimento, como seus relógios. 

    Entrementes, há no enredo de Jeremias… uma subtrama dispensável sobre um amor romântico por uma certa Colombina, interpretada por Luiza Rodrigues, que pouco adiciona ao balé de alegorias até então. Tal enredo, inclusive, trunca o trabalho por vezes; a paixão súbita não parece se justificar, e por mais gentil que seja o trabalho de Gabriel Cabral vivendo esse Jeremias Pierrô, resta em cena um ruído no curso da história, principalmente dentro da sua verossimilhança apresentada que se fazia terna e plausível em suas divagações riquíssimas sobre o Tempo.

    Contando também com intervenções dramatúrgicas mítico-filosóficas das figuras alegóricas de Cronos e Kairós (deuses do Tempo na mitoliga grega), vividos respectivamente por Layon Figueiroa e Thiago Rodrigues (num trabalho de voz elaborado e distinto), Jeremias… ganha vigor ao não se submeter aos percalços de infantilizar a sua própria história; discute-se em cena as artimanhas do Tempo, abstrações compreensíveis e robustas, acessíveis ao público através da ludicidade com a qual a montagem as aborda. Os bonecos manipulados por Figueiroa e Rodrigues são imensos e também o aspecto visual mais encantador do espetáculo (confeccionados por Alcio Lins, Altino Francisco, Alex Apolônio e Wilson Aguiar). Eles trazem à montagem uma virtuosidade ímpar; como na passagem mais elegante da montagem, em que abraçam o Avô Relojoeiro serenamente, completando o ciclo do Tempo; deixando uma saudade.

    Brilhando em cada nota e arrematando com sua delicadeza ímpar, a trilha sonora original composta por Rafael Victor não só adorna Jeremias… mas também se faz água doce nesse rio tão brando quanto complexo do Tempo. As músicas-tema são fundamentais para a compreensão das personagens apresentadas, como também sobressaem-se à atmosfera criada pela iluminação (concebida e executada por Karine Lima) trazendo um monumento arrojado com sua sonoridade. Trabalho exímio de criação e execução.

    Ao final de Jeremias e as Caraminholas o sentimento de ternura e saudade prevalece, a vontade de estreitar laços e valorizar o presente se transmuta gentilmente no peito. O Teatro do Amanhã se faz atual e delicado.

    A eternidade é o estado das coisas neste momento.
    Clarice Lispector

  • Devaneio Lusco-fusco | Crítica de Sonho de uma Noite de Verão

    Devaneio Lusco-fusco | Crítica de Sonho de uma Noite de Verão

    Foto: Lilianne Guerra

    Por Paulo Ricardo Mendes
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Setembro de 2021


    …as pessoas apaixonadas veem o que imaginam, não o que seus olhos enxergam e, portanto, o Cupido alado é pintado com vendas nos olhos…
    William Shakespeare

    Por volta de 1595 e 1596, William Shakespeare apresentou pela primeira vez para o público sua comédia intitulada “Sonho de uma noite de verão”. Uma obra que tratava, sobretudo, do amor; às vezes correspondido e em outros momentos não, mas cujas referências estavam ancoradas no universo mitológico greco-romano e na literatura clássica. A história em si conta a saga do triângulo amoroso entre Helena, Lysander e Demetrius, tendo uma trama que se desenvolve a partir das decisões e escolhas sobre os seus relacionamentos, que sofrem interferências da família e dos seres que habitam a floresta, as fadas e Elfos. 

    Na peça shakespeariana é possível observar o quanto o dramaturgo estava conectado com a sua época, ao retratar a sociedade inglesa e o Renascimento, uma vez que utiliza como referencial na trama figuras da mitologia grega, como Teseu e Hipólita. “Sonho…” passou a ser considerado um dos principais trabalhos desenvolvidos na primeira fase do escritor e ao longo de várias décadas foi adaptado para múltiplas mídias. Até os dias atuais essa peça tem rendido pano para manga sendo, inclusive, utilizada como projeto de conclusão para a turma da Escola Social Cobogó das Artes, que se apresentou para o público no palco do Teatro Barreto Júnior, após a retomada dos espetáculos presenciais na cidade do Recife/PE. 

    Era um pouco mais das sete da noite, com a casa praticamente cheia, mas obedecendo aos limites estabelecidos pelo protocolo de segurança, por causa da Covid-19, quando iniciou a montagem “Sonho de uma noite de verão”, com direção de Vanessa Sueidy (tendo Gabrielle Pires como assistente de direção e Eduarda Melo como assistente de coreografia), também assinando a coreografia e figurino. Logo de imediato, observa-se uma cenografia criativa e lúdica, com uso de materiais recicláveis, que alude bem às cenas da peça. A iluminação cênica cumpre o seu papel, auxiliando na composição do cenário e permitindo nos remeter a atmosfera proposta pela trama, como no momento da floresta, na cena das fadas, por exemplo. 

    O figurino de parte do elenco é simples e sem grandes produções, tendo como destaque o visual do personagem Puck, que além de uma boa caracterização ganha o reforço da atuação e trabalho corporal encantador da sua intérprete Eduarda Melo. O Oberon, o Rei dos Elfos, interpretado pelo ator Antônio Valença também se destaca pelo trabalho de voz e de corpo, a partir da postura de autoridade que o personagem exige, em alguns momentos pecando pelo caricatural, mas na maioria das vezes sendo agradável de assistir. No seu figurino observa-se referências gregas, devido ao traje obscuro e aos chifres pontudos, remetendo mais ao Deus das Trevas da mitologia do que ao próprio Rei dos Elfos. 

    O melodrama da personagem Helena, interpretada pela atriz Beatriz Azevedo, a partir do gestual comedido e na expressão facial, é convincente, assim como, o corporal e o vocal desenvolvido por Bárbara Correia, para representar Fundilho, que depois se transforma em um asno. Já o trabalho corporal de Emília Marques, que faz a Rainha das Fadas Titânia, fica aquém do potencial da personagem, pela ausência de delicadeza e leveza nos seus gestos, do mesmo modo pelo acabamento do figurino. 

    No entanto, para além dos elementos cênicos, a dramaturgia truncada talvez seja o ponto que merece maior atenção, porque por mais que tenha o conflito dos casais como o principal ponto de partida, o cerne não está claro nas ações tomadas pelos seres da floresta. Já que na história, Oberon quer o pajem de Titânia e por isso ordena ao elfo que pingue sobre os olhos de Demétrio o sumo da flor, enquanto ele faz o mesmo com a rainha , fazendo-a se apaixonar pelo primeiro ser que avistar. Episódio que não fica entendível durante toda a adaptação da Cobogó. 

    Além disso, a tentativa de comédia shakespeariana da montagem é pouco engraçada, ainda mais quando em pleno século XXI, utiliza-se de uma das pautas delicadas sobre o universo LGBTQIA+ para provocar o riso, no momento que o personagem Flauta faz comentários infelizes sobre o fato de estar travestido com roupas ditas femininas. O tempo de montagem, com um pouco mais de 2h, a falta de nuances na atuação e o pouco dinamismo do texto também torna a experiência cansativa, salvo momento quando Puck aparecia e ajudava a quebrar a monotonia das cenas com uma pitada de humor, a partir das suas trapalhadas. 

    Os momentos de dança das fadas e dos elfos, que poderiam trazer essa modulação entre uma situação e outra são poucos explorados, a coreografia não desenvolve fortemente o trabalho corporal dos dançarinos, que apresentam passos já datados e com pouca energia. Aliado a isso, as músicas apresentadas em cena ora de cunho medieval, ora contemporânea, provocam uma incongruência na estética pretendida pelo espetáculo, associado ao texto também que mescla entre o rebuscado e o coloquial. 

    “A experiência não foi em vão”. Resumo essa frase dita por Puck, já próximo do término do espetáculo, para remeter essa adaptação de “Sonho …”, do projeto de conclusão da turma da Escola Social Cobogó das Artes, que tem seus méritos pelo resultado final da montagem, ainda mais pela coragem de adaptar uma obra difícil e conhecida mundialmente de Shakespeare. Fica evidente o esforço coletivo da equipe de produção diante de uma pandemia e da falta de patrocínio, seja pela mobilização, devido ao quantitativo de pessoas na plateia, como também por tudo que conseguiram produzir e realizar nesse período tão difícil para a arte. 

    Neste dia em questão, na plateia, tinha uma grande quantidade de crianças de uma ONG assistindo ao espetáculo que, inclusive, em um dado momento, participou interagindo espontaneamente com a cena, situação que tirou boas gargalhadas do público. O simbolismo desses pequenos ali presentes despertou a sensação de renovação. Foi bom ver essa nova geração indo ao teatro; que isso seja um presságio de esperança e de um novo tempo de prosperidade que há de vir. 

  • Levítico 18:6 | Crítica de Perdoa-me Por Me Traíres

    Levítico 18:6 | Crítica de Perdoa-me Por Me Traíres

    Foto: Lilianne Guerra

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Setembro de 2021

    Choro. Choro muito, eu sempre choro, eu me verto em lágrimas quando me emociono. Mais de um ano e meio sem pisar num teatro, sem ver um espetáculo; a experiência deságua pelos meus olhos assim que a cortina abre. Quão mais quando a cortina fecha. Ver a emoção no rosto do grupo ao fim do espetáculo foi soberbo. Respeitando as normas de distanciamento e executando um trabalho de divulgação louvável, a Cobogó das Artes traz ao palco do Teatro Barreto Júnior Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Rodrigues, em meio a uma paulatina reabertura dos espaços culturais da cidade.

    A obra de Nelson Rodrigues é antes de tudo palavra. A ação de suas rubricas e suas indicações de cena, ou mesmo suas interferências encenadoras no texto, não estão para o texto Rodriguiano como está a palavra que é dita por suas personagens.  Logo, uma leitura neutra de tal texto, sobre um tablado vazio, já seria demasiado impactante, visto que o texto carrega por si só a genialidade de um dos maiores autores do teatro mundial. A montagem de Perdoa-me Por Me Traíres dirigida por Adriano Portela, contando com a assistência de direção de Polyana Luna e Rodrigo Hermínio, faz uso de sábias e enxutas escolhas na sua encenação, de modo a dar vazão ao canônico texto, mas, como toda personagem do universo de Nelson, peca enquanto goza. 

    Num design de produção diminuto, mas que nos esboça um flerte com a ambientação do Rio de Janeiro da década de 1950, o palco — e figurinos, maquiagens, e cenografia — se reveste de poucos elementos; três biombos, cadeiras, panos, mesinhas e um telefone. Tal brevidade visual auxilia a montagem a seguir o propósito mínimo de dar espaço para a palavra tomar conta.

    Então o espetáculo conta a história de Glorinha, órfã criada pelos tios Raul e Odete, que vai ao bordel de Madame Luba escondida do tio Raul a convite de sua amiga Nair. Em sua amoralidade social, a dramaturgia de Perdoa-me… é transportada para o palco praticamente na íntegra, com mínimas alterações, os termos usados são os de outrora, as referências também, as palavras, no entanto, custam a parecerem realistas na boca do grupo em 2021 — mesmo a sordidez psicológica humana abordada por Nelson estando presente e rondando a montagem como as personagens que nunca saem de cena. Aqui essa escolha da encenação de manter as personagens presas vagando pelo palco, entrega movimento e corpo à peça, mas por vezes distrai quando o foco da ação não é bem delimitado.

    O texto de Nelson não poupa críticas, da classe política à pequena burguesia temulenta de falsos valores cristãos, as palavras rasgam psico-politicagens imundas aos olhos de quem os tiver. Em determinado momento, a personagem assistente do bordel, Pola Negri, vivida por um extrovertido Matheus Campos, responde à Glorinha que indaga sobre a polícia ir até lá prender todos, e diz: “A polícia vai prender um deputado? Com que roupa?”. Êxito absoluto a escolha de tal dramaturgia e de fato não falta coragem ao elenco, composto por talentos amadores e profissionais da área; a matriz de interpretação escolhe veias real-naturalistas como bússola, mas oscila em sua credibilidade ao longo do trabalho. As palavras (sempre elas) são difíceis aqui, imensas, grandes demais, pequenas, mínimas, espalhafatosas e secas, sombrias, ébrias, mas sobretudo, complexas. 

    “Porque há o direito ao grito, então eu grito”, diz Clarice Lispector, em A Hora da Estrela. Escuta-se muito pouco quando há apenas o grito como solução para extravasar as personas Rodriguianas. Há por vezes certa monotonia por parte do elenco, faltam nuances às suas escolhas de materialização desse real-naturalismo, ora está tudo muito estridente e as personagens estão em um espasmo gritado demonstrando seus descontroles pouco convincentes, quase beirando o caricatural; ora uma apatia toma conta das ações e aqui e ali se perde o tesão tão intrínseco no texto de Perdoa-me…. No todo, uma falta de ritmo e intimidade com o texto parecem ditar o jogo cênico proposto; pois quando o espetáculo termina, o elenco, ao recepcionar o público, vibra em comemoração de tal maneira que a falta desse vigor em cena é sentida. 

    Mesmo com o texto na ponta da língua, o grupo sofre com ápices fervorosos e diálogos mais mornos, contudo, a instabilidade da montagem tem em seu Tio Raul seu grande trunfo; uma das personagens mais complexas do universo Rodriguiano, Tio Raul é uma profunda alegoria de masculidades fracionadas em suas fantasias. O ator Laerte Augusto entrega uma performance fascinante e intrincada, há uma calma detestável na forma como o ator nos apresenta sua persona e mantém assim toda a trama gravitando ao seu redor. Seus olhos se esbugalham e suas mãos se manifestam exuberantemente na medida em que o texto avança; trabalho sofisticado. A montagem também conta com algumas ações físicas memoráveis, como quando o Médico, interpretado por Micael Alexandre, cospe caroços de laranja pelo palco e deixa claro que, em dado momento, ali quem manda é ele; ou no nervosismo observador da Glorinha, interpretada por Polyana Luna, ao constatar que, num flashback, o passado de seus pais não foi exatamente como lhe era sabido; e também quando, neste mesmo flashback, vemos Gilberto, aqui Matheus Stamford, desenhando um contorno de cena caprichado aos pés de sua esposa, percebemos o brilho do trabalho e de como a montagem requer a robustez da prática e da repetição. 

    Numa lamentável inserção final, a nota ao término da montagem de Perdoa-me… não é das mais agradáveis; numa tentativa frouxa de adicionar um possível final alternativo para a trama, a montagem perde muito de sua linguagem estabelecida com uma coreografia executada com estranheza pelo elenco, que mesmo esforçado, não convence. Em suma, Perdoa-me Por Me Traíres entrega uma corajosa execução que, mesmo ainda titubeante para encontrar seu tom, se mostra contundente. Sempre valioso ouvir a palavra Rodriguiana. O teatro vive muitíssimo.

  • “Político é tudo igual” ou Como despolitizar o debate | Crítica de Eleições Vorazes

    “Político é tudo igual” ou Como despolitizar o debate | Crítica de Eleições Vorazes

    Foto: Divulgação

    Por Ananda Neres
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Julho de 2021

    “Político é tudo igual” ou Como despolitizar o debate | Crítica de Eleições Vorazes 

    Por Ananda Neres

    Financiado pela Lei Aldir Blanc, Eleições Vorazes estreou dia 27 de junho às 18h gratuitamente pelo Youtube e permanece disponível até o momento em que este texto foi redigido. 

    O espetáculo aborda um debate televisivo entre dois candidatos à prefeitura da cidade de Cupira, Horácio Rodrigues (Gilvan Noblat) e Théo Marchiori (Paulo César Freire). Após iniciada a peleja, a mediadora (Lili Guedes) é avisada da baixa de audiência da exibição e pede autorização dos participantes para remodelar o debate. A obra do grupo Ato Faio S. A se desenvolve através de diferentes quadros deste remodelado debate televisivo.

    Os candidatos representam, em teoria, dois pólos opostos da política nacional: Horácio à direita e Théo à esquerda. Para isso, são utilizados lugares-comuns em suas caracterizações: o primeiro pertence a uma família tradicional da política e do empresariado da região, defende ideais cristãos e conservadores e é criminoso em todos os âmbitos de sua vida. Por outro lado, o segundo apresenta uma confusão de símbolos que vai de Che Guevara estampado em sua camisa vermelha a colares de miçangas e bottom da Palestina, é “acadêmico”, “feministo”, maconheiro, defende o poliamor, entre outras pautas pequeno-burguesas. Sendo ele a figura mais problemática da encenação.

    Théo Marchiori representa a crítica realizada à esquerda, contudo, as ações e falas da personagem são incoerentes entre si: ora fala de racismo reverso, ora bate panela, ora entende a figura política de Lula como “santo” e portanto impassível de críticas, ora incorpora em seu discurso paráfrases confusas da ex presidenta Dilma, ora fala de revolução e por aí vai. Mas afinal, a partir desse mosaico de informações, qual a crítica que o espetáculo pretende realizar? Não fica claro.

    A construção destas personagens não permanece caricata apenas em sua caracterização, mas também, em seu desenvolvimento. A atuação não apresenta grandes nuances, sendo por muitas vezes repetitiva e previsível, fato que torna os candidatos pouco críveis. Não bastasse, quando parece não haver mais para onde expandir a interpretação, recaem em insinuações sexuais, igualmente insípidas.

    Nesse sentido, o texto também traz poucas surpresas. Muito do que é dito são discussões ou memes que circulam na internet, com o objetivo de satirizar e criticar o cenário político atual. Contudo, se a arte busca refletir seu tempo, as referências utilizadas na construção das cenas não o fazem. Menções a programas de auditório como Xou da Xuxa, a quadros como o torta na cara, a brincadeiras como “gererê, gererê lsd” e memes antigos como o de Suzana Vieira tomando o microfone da mão de uma apresentadora iniciante, reforçam a sensação de falta de novidade durante a apresentação.

    Por outro ângulo, o espetáculo acerta ao revelar que a esquerda pequeno burguesa não parece estar verdadeiramente interessada nos problemas dos trabalhadores, mas em conchavos com partidos e grupos imperialistas, sendo muito semelhante a quem diz se opor. Do mesmo modo que, recentemente vimos pessoas ditas de esquerda, como Marcelo Freixo e Flávio Dino, se filiando ao PSB, partido que apoiou o Golpe de 2016. 

    Todavia, a máxima “Todo político é igual” ou “É tudo farinha do mesmo saco”, implicitamente presente no espetáculo, não é verdadeira. Esse tipo de argumento despolitiza a discussão e mostra uma percepção fatalista da realidade. Imóvel. Impassível de mudanças. Que tem como proposta não fazer nada além de sentar e assistir ao desmonte do país. Por essa lógica, os projetos políticos do PSB ou do PSDB são equivalentes aos do PT ou do PCO, por exemplo, sendo estes, inclusive, muito distintos entre si. Argumento que demonstra que pouco se entende sobre esta questão. Sendo assim, o discurso que afirma que todos os políticos são iguais e, portanto, “salve-se quem puder” – como mencionado em um momento do espetáculo – é desmobilizante e falacioso.

    O bate e rebate de perguntas temáticas e provocações entre os candidatos segue durante todo os quadros do espetáculo, até o momento em que Horácio Rodrigues sai do controle e incorpora em seu discurso diversas falas do presidente golpista Jair Bolsonaro. Uma crítica clara à postura do chefe do executivo.

    Por fim, retomo os primeiros dizeres do espetáculo:

    Bem, o alívio cômico existe e surge timidamente na figura do Assistente de palco (Aurélio Lima), principalmente em seus momentos no fundo de cena, mas não somente. Todavia, considerando os argumentos presentes nesta crítica, percebe-se que a obra está muito distante de um “documentário”, ou, como no sentido utilizado, de um retrato da realidade. Falta sofisticar as propostas, a produção técnica da montagem fílmica e organizar as informações de modo que fique claro quais elementos se objetiva criticar.Apesar da crítica pouco aprofundada e por vezes confusa, Eleições Vorazes tem como trunfo a busca por trazer para a arte o contexto político no qual está inserida, superando a suposta “neutralidade” de outras produções contemporâneas. Afinal, não tomar partido é tomar partido. Arte e Política são, sem dúvida, indissociáveis.