Categoria: Crítica

  • Camp, Camp, Camp! | Crítica de Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora

    Camp, Camp, Camp! | Crítica de Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora

    Foto: Divulgação

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Maio de 2022

    Kill everyone now! Condone first-degree murder! Advocate
    cannibalism! Eat shit! Filth is my politics! Filth is my life!

    (John Waters/Divine, Pink Flamingos)

    A espalhafatosa experiência camp de “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”, da Cobogó das Artes, começa muitíssimo antes da cortina do Teatro Apolo abrir. Os cartazes de divulgação que foram compartilhados nas redes sociais já dão por si o tom a ser encontrado em cena: em sua desarranjada paleta de cores pastéis e fotografias ultra-tratadas por computador, um deleite. Já na estreia, na primeira apresentação, um grupo de crianças do Projeto Pirraias da Periferia está presente ali, crianças de cerca de dez anos que estariam em breve com um conteúdo que tem uma classificação etária por volta dos 14; é divertido ver e ouvir aquele buchicho da criançada ansiosa. Eu estava ali com elas. Na ansiedade divertida. O codiretor do espetáculo, Adriano Portela, entra então pela cortina dando avisos antes de começar, tomando o tom cômico de primeira, legendando o que será visto, deixando claro o contexto no qual seremos inseridos, botando todos os pingos em todos os ‘is’ e em alguns ‘ípsilons’ também; fazendo um perspicaz trabalho de aliteração da proposta. Começamos e continuaremos em grande estilo. E a experiência imersiva vai se dando do lado da plateia também; ao longo de cerca de 40 minutos do trabalho começado, uma pessoa da produção tirava fotos com flash da plateia, do palco, dos atores em cena e zanzava de um lado para o outro da parte de cima do teatro, interferindo cômica e incomodamente em plena consonância com o espetáculo que se apresentava. Imersão completa no universo camp proposto.

    A obra homônima de Caio Fernando Abreu, escrita em um só ato, se dá principalmente como uma força de contracultura ali por meados dos anos 70, mas, censurada pela ditadura, só ganha sua primeira publicação em 1997. Dessa forma, indo poderosamente antagônica ao conservadorismo que se mesclava com a ditadura assassina e cruel no Brasil, “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”, adaptada aqui pela Cobogó das Artes, encontra um terreno fértil para fazer sua morada irônica se estendendo à 2022. O mundo mudou. Mas o estridente trabalho, com direção assinada por Adriano Portela e pela estreante Eduarda Melo, se mostra particularmente potente ao se propor despretensioso, humilde, tão completa e refrescantemente falho ao longo de seus mais de 90 minutos de cena que o triunfo está no caos jovial proposto.

    Eu poderia levantar aqui uma problemática LGBQIA+ sobre representações, gordofobia, capacitismo, até mesmo misoginia e machismo do texto; mas o camp é maior que tudo isso. O camp é Divine comendo merda de cachorro em Pink Flamingos. O camp é bufonaria. O camp não tem limites pautados no real, muito menos no político, o camp é apolítico e caótico. O camp é incólume.

    O espetáculo aqui conta a história de um grupo de jovens que se vê preso num casarão abandonado no meio de uma extrema chuva; imaturos em sua maioria, o grupo está ali discutindo o anseio e a força-motriz de um estado de espírito que beira o inacreditável, mas também incomodado e com uma esperança rasa. Personagens múltiplas que perpassam uma grávida, uma hippie, um trio de meninas quase siamesas, e mais outros tantos gritos dramatúrgicos de personagens-tipo estridentemente deleitantes.

    No âmbito tomado camp e kitsch para montar um trabalho tão absoluta e afavelmente amador em suas propostas cênicas, vale destacar aqui os momentos musicais, ponto alto do espetacular espetaculoso espetáculo, melhor ainda quando cantados ao vivo; numa ode à programas de talentos de televisão. Inclusive, a televisão é uma estética assumida no trabalho, uma homenagem à sitcoms impregna todo o trabalho proposto; das atuações farsescas ao meticuloso desarranjo dos figurinos, o camp está presente a todo momento no furacão cômico que é “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora”. São tantos os momentos icônicos do trabalho que fica difícil pontuar apenas um, tudo está tão concatenadamente torto que o mosaico que vemos é extremamente engraçado e movedor de entretenimento. A plateia se dobrava nas cadeiras, o riso era fácil, solto, frouxo, de uma ingenuidade pulsante que poucas vezes vi no teatro; ressalto grandioso para o trabalho de Eduarda Melo como atriz, ela e sua personagem Amélie são a chave para a maior diversão possível e imaginável. A atriz está em cena como uma mestra de ventriloquia da atmosfera, cada reação que ela tem da cena, de dentro da cena, altera a percepção do espectador sobre o trabalho; Eduarda entrega aqui um trabalho de tamanha espontaneidade que vai ser difícil um dia esquecer de suas caras e bocas tão precisas a todo aquele absurdo que é o enredo a peça, especialmente numa cena em que performam um parto no palco, Eduarda capta uma essência de comédia do absurdo como ninguém.

    Em deleitosos momentos surrealistas de descontinuidade, como o que os personagens simplesmente sobem uma escada claramente folclórica, o jogo cênico com os sotaques e as outras línguas, afora o português, é de tamanha vertigem que há momentos em que os próprios atores em cena fazem uso de sotaques de personagens que não são seus; uma grande La Tomatina, guerra de tomates tradicionalmente espanhola. E não para por aí, imitações fantochadas de ícones da contracultura, como Fred Mercury e John Lennon, dão ainda mais estofo para esse grande puff em formato de melancia posto num consultório oncológico que é a montagem desse espetáculo; há aqui um tesão absurdo pelo próprio absurdo, uma idolatria ao senso comum numa subversão dele ao passo que o glorifica. Está tudo errado, está tudo fora de lugar. Não estamos também assim o mundo e seus habitantes? Transitando pelo absoluto absurdo camp, “Pode Ser que Seja só o Leiteiro Lá Fora” é muito mais do que um espetáculo teatral, é uma experiência antropológica sobre a existência humana levada à sua potencialidade de escombros numa comédia caótica.

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  • Um Corpo Como o Cerne da Questão | Crítica de Manifesto Transpofágico

    Um Corpo Como o Cerne da Questão | Crítica de Manifesto Transpofágico

    Foto: Divulgação

    Por Paulo Mendes
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    “Meu corpo é uma prisão
    Que me impede de dançar com aquele que amo
    Mas minha mente segura a chave
    Meu corpo é uma prisão
    Que me impede de dançar com aquele que amo
    Mas minha mente segura a chave (…)

    My body is a cage – Arcade Fire

    “Quando foi que você decidiu ser Ela? Qual seu nome verdadeiro? Não, o verdadeiro mesmo, o de batismo? O que tem entre as pernas? Tem certeza de que é ela? Tem como provar?” Questionamentos como esses são mais comuns do que se imagina na vida de travestis e transexuais, que precisam lidar diariamente com à sina de viver numa sociedade cheia de preconceitos e com estigmas relacionados a esse corpo; cujo resultado disso reflete no número alarmante e preocupante de violência e morte contra essa população. 

    De acordo com o relatório do Transgender Europe (TGEU), por exemplo, que acompanha dados mundiais levantados por instituições trans e LGBTQIA+, nos últimos 13 anos, pelo menos 4.042 pessoas trans e de gêneros não-binários foram assassinadas entre janeiro de 2008 e setembro de 2021. Esses crimes foram motivados pelo fato de as vítimas terem a identidade de gênero e sexualidade fora do padrão imposto por um coletivo. Cabendo ao Brasil ocupar o top 1 do país que mais mata travestis e transexuais no mundo.

    Assim como muitas vezes, vida e arte se misturam, a realidade nua e crua desses corpos dissidentes foi retratada a partir de um monólogo escrito pela atriz, diretora e roteirista Renata Carvalho intitulado “Manifesto Transpofágico”, que participou da programação do Festival Trema!, no Teatro Luiz Mendonça Filho, no Recife. A frase “Hoje eu resolvi me vestir com a minha própria pele. O meu corpo travesti” é uma das primeiras coisas ditas pela atriz em cena, que se propõe a usar o seu próprio corpo para contar as suas vivências enquanto uma travesti e de suas antecessoras.

    A sua corporeidade acaba sendo o cerne da questão, afinal, a estrutura física parece ser mais importante que qualquer outra coisa, quando estamos nos referindo a forma como se enxerga essa população. Corpo-objeto. Corpo marginalizado. Corpo questionado. Renata aparece em cena apenas vestida com uma calcinha e todo o resto descoberto – em um dado momento ela até pergunta se é necessário para fazer aquele espetáculo, ficar totalmente nua, mas a plateia, a partir de uma votação, julga que não. A iluminação, inicialmente, cobre o seu rosto, porque para contar aquelas histórias parece não ser necessário conhecer a sua face. 

    Em cena, a atriz utiliza-se do teatro documental para ir recortando momentos da sua vida e levantando discussões acerca da identidade de gênero, a partir de fotos, vídeos e memórias. O monólogo suscita várias reflexões, uma delas, acerca da forma como desde cedo vamos construindo essa necessidade de definição dos papéis atribuídos para aquele bebê na barriga da mãe. “É menino ou menina? Se for ele tem que usar azul, se for ela, rosa”. Renata vai mostrando, a partir da sua fala e com um auxílio do datashow, como esses estereótipos de gênero vão sendo perpetuados e criando esse padrão biologizante. No palco, centralizado, um letreiro escrito “TRAVESTI” cumpre um papel importante para tornar o monólogo didático. O elemento cênico vai mudando de cor e interagindo de forma ilustrativa conforme a atriz vai narrando os acontecimentos.

    Nos vídeos que vão surgindo no telão também é apresentado o universo marginalizado das travestis e transexuais; relacionados ao fetiche, prostituição e doenças. O uso da hormonioterapia, terapia hormonal para fins como masculinização e feminilização, é retratado no manifesto, escancarando a realidade desses corpos que muitas vezes precisavam recorrer a métodos ilegais e perigosos para alinhar as características sexuais com sua identidade de gênero. Inclusive, a própria atriz passou por esse tipo de procedimento para ter traços considerados mais femininos. 

    As violências cometidas contra esses corpos e a perseguição político-social se torna uma das partes mais dura de assistir. Em um pouco mais de 1 hora de espetáculo a atriz interrompe aqueles conteúdos que estavam sendo exibidos no telão e desabafa “não consegui continuar depois daqui”. Neste momento, a impressão que passa é que o monólogo chegou ao fim. As luzes acendem e a atriz se direciona ao público, aproveita a ocasião para tirar dúvidas e matar a curiosidade dos espectadores sobre identidade de gênero. É aí que a segunda parte do manifesto começa; numa espécie de aula-espetáculo Renata convida ao público a desmistificar a ideia sobre aquele corpo, a partir do toque, do abraço e da empatia. 

    Ao mesmo tempo que escuta sobre as diversas histórias, a atriz levanta alguns questionamentos: “Você já beijou uma travesti?; você já abraçou uma travesti? Etc”. O público, por sua vez, aproveita a deixa para ir interagindo e conhecendo sobre esse universo, que é tão distante para uns e tão próximo para outros. Na plateia, casais formados por homem cis e mulher trans relatam suas vivências; amigos de travestis contam sobre situações acometidas; parentes narram sobre a sua relação com familiares que estão no processo de transição. Entretanto, talvez dos depoimentos presenciados naquele dia, um dos que mais tenha chamado atenção foi o de uma mulher que levou uma criança para assistir ao espetáculo, alegando que precisava ensiná-la desde cedo a respeitar as diferenças. E que o Manifesto traria essa contribuição. 

    De fato, esse monólogo cumpre um papel importante nesse sentido, pois ele expõe os acontecimentos e faz com que o público saia daquele teatro entendendo que não se trata apenas de um corpo. Se trata de toda uma esfera que foi construída para aceitar apenas a cisnormatividade e excluir tudo aquilo que foge do padrão. E a consequência dessa marginalização, é a falta de oportunidade, violência e os números gritantes de morte contra travestis e transexuais no Brasil e no mundo. 

    Em Manifesto Transpofágico, Renata está despida não só de vestimentas, mas também de qualquer julgamento e de apontamentos, está ali, de peito aberto, para mostrar que vai muito além do seu corpo.

  • Recife, 20 Anos a Menos | Crítica de Altamira 2042

    Recife, 20 Anos a Menos | Crítica de Altamira 2042

    Foto: Divulgação

    Por Lucas Oliveira
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    Antes de começar a atriz convoca do público ainda fora do teatro sete mulheres, divididas em rio ou rua, as leva para dentro, só depois, entramos. Todo significado ainda é superficial. Silêncio. O que virá? É um espetáculo tecno-xamânico, o que é? As tendências contemporâneas do teatro me excitam, o que se pode inferir sobre aquelas parafernálias tecnológicas no meio do teatro Marco Camarotti não se sabe a primeira vista, é preciso viver. Primeiro me acomodo na cadeira, depois no chão do teatro, alguém me diz que a experiência é melhor ali – NO CHÃO – me intrigo mais, acredito neste alguém. São muitos fios, caixas de som chinesas, leds, projetor, o cenário é um laboratório. É preciso viver. Teço, então, nas próximas linhas pontos de vida de um espetáculo potente.

    DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL

    As luzes que iluminam a entrada do público não se sustentam por muito tempo e se apagam, uma escuridão gigantesca e silenciosa se instaura, e a partir daí a luz de uma lanterna se acusa, ela observa, nós acompanhamos seu movimento, escutam-se passos que cruzam o palco entre as pessoas, a atriz agachar nua, tem em mãos um pen-drive, ela o conecta a uma caixa de som e, aos poucos, tudo é água e correnteza correndo, depois noutra caixa é mata, é bicho. É natureza. O suficiente para estarmos presente nela. Paramos para contemplar o escuro da mata no coração de Santo Amaro. Me surpreende a força da cena, e como de cara, o espetáculo causa uma experiência sensorial prazerosa e tão verdadeira, tudo através do som, como uma forma de reencontro com o que se quer falar. Já posso dizer que o trabalho com o som no espetáculo é algo como um primeiro destaque, pois além de demonstrar uma sensibilidade das potências tecnológicas dentro da cena, promove um processo de experiência deslocante e imersiva. Ao passo que o som é a melhor forma de fazer ali o espaço, as histórias, o rito da terra e do teatro; ele também sustenta o vínculo de verossimilhança entre obra, vida e público.

    E o som ainda apresenta outras possibilidades da sua concepção, como as caixas chinesas que no seu efeito luminoso também possibilitam releituras. Nesta cena em que a atriz instaura o público numa experimentação dos sons da mata, essas luzes adensam o efeito da floresta, o recurso permite muito, até acessar a distopia de sentir estar em uma floresta através de tecnologias. É incrível e assustador ter a sensação de provar como em alguns anos, se seguirmos estes passos em que seguimos, já não conseguiremos sentir a mata pela mata, penso que isso é uma forma de dizer e alertar que já estamos longe Demais de alguma “salvação”, mesmo que optemos por alguma mudança, Altamira  2042 é agora. 

    DO ASSUNTO

    O espetáculo quer fazer refletir sobre a presença imperialista que enfrentamos hoje no Brasil e na América Latina. Fala sobre a falta de respeito da política nacional com as pessoas e com a terra. A atriz toma por base a cidade de Altamira, nas margens do Rio Xingu, no Pará, na boca da hidrelétrica de Belo Monte. Altamira 2042 de Gabriela Carneiro da Cunha apresentado no Festival Trema, em 2022, é o drama e o caos político comum, em um país que nunca deixou de ser colônia, que mais assassina ativistas, que despreza a vida e a terra, que se cala e apoia o desmatamento da Amazônia, o garimpo do estupro de crianças e o sequestro de uma comunidade inteira de Yanomamis. O espetáculo destaca também a resistência, principalmente da força feminina direcionada à luta. O feminino nas suas possibilidades concretas e encantadas. O espetáculo propõe claramente o enfrentamento, é uma denúncia e um chamamento. A coletividade é um tocante sentimento aguçado pela atriz e pela obra, uma vez que a denúncia não pretende somente falar, mas é também uma sensibilização e uma convocatória à luta e ao rito de transformação.

    DAS IMAGENS

    Algumas imagens também merecem ser apontadas em suas possibilidades. O auxílio da tecnologia em cena nos permite muita coisa, o encontro com essas possibilidades, as imagens da cabeça ser caixa de som, um projetor de vídeo, de nos comunicarmos por essas posições dos aparelhos, de nos sentirmos olhados por eles. A presença da caixinha chinesa possibilita refletir sobre a globalização, a mercantilização, as novas conexões que vivemos neste tempo; a tecnologia ganha outra subjetividade. O Corpo nu o tempo todo trata dessa nova configuração de natureza humana, estamos tão simbióticos ao Tecno, que não conseguimos mais dissociarmos dele, somos tecno-humanos, também? 

    DO ANDRÓGENO DA ATRIZ

    Algumas marcas de tendências contemporâneas também conseguem dizer sobre a obra, a atriz interpreta a fundição do humano com a tecnologia, ela em cena é uma ciborgue, tem o corpo extrapolado, sem órgãos, com órgão demais, transformada, afetada por tudo isso, por ela mesma, pela cobra mãe, pela morte, pelo medo, pela vida. Diante dos meus olhos eu vejo uma mulher biônica.

    DO FEMININO

    Da natureza, da terra, do rio, dos povos tradicionais nasce na cena o mito da grande cobra, uma mulher. As referências e o processo de entendimento do mito e do feminino, a reflexão sobre uma das simbioses naturais: a do humano e a natureza, inserido no processo tecno e correspondendo e se negando a ele. A mulher, a terra, a natureza Incorpora o povo, come o povo, regurgita todo mundo. A cobra, Boiuna, é a metáfora da criação, da transformação, do princípio da fertilidade. Nessa perspectiva, o feminino se aponta também como o nascedouro: a cobra é a terra, a terra é a mulher, a mulher é a cobra. A grande mãe, quem tudo gerou, a qual resiste, a qual transforma, a qual está na mira da morte, pois eles não querem somente esgotar a vida, o que eles querem é acabar com as fontes dela. Na sensibilidade de presenciar tudo isso em cena, logo me remeto às mulheres de Tejucupapo, sim, o Brasil está cheio dessas mulheres, são pioneiras na batalha, são elas que encabeçam a decolonidade.

    DA VOZ QUE É BOA 

    A repetição constante da ideia no espetáculo diz mais ainda, ele não é mais um anúncio de morte, é um retrato da morte que já acontece, é a circunstância do agora. Altamira 2042 é também uma forte Crítica ao progressiano, termo alcunhado em cena aos que acreditam em um futuro sem mata, sem história, em um futuro perdido. não há concreto que sustenta tamanho caminho inoportuno. Ir de frente, falar, dizer é a mensagem; clara, latente, repetitiva.

    DAS CONSIDERAÇÕES SURGIDAS PELAS ESQUISITAS RUAS DE SANTO AMARO, TARDE DA NOITE DEPOIS DO ESPETÁCULO

    Mas apesar de observar potencialidades muito boas, discursos pertinentes e linguagem inovadora, sinto também certa resistência em este conteúdo estar sendo executado por uma pessoa deslocada do lugar de  fala, não desacreditando nas potencialidades de quem conta, mas é inevitável minha ânsia pelo protagonismo correto, querendo sobressaltar o lugar de quem fala para que fale da melhor forma possível, uma vez que diante de tanta negação de falas, assegurar algumas é um bom caminho para essa concretização. É a questão da imagem, da presença. Não é somente voz que nós, povos Latino-americanos oprimidos, precisamos ter; precisamos ter voz, presença, ouvidos, cara, cheiro, gesto, lugar. Não que as vozes não estivessem ali, mas por vários momentos até agora, queria estar na presença da cena das próprias mulheres ribeirinhas-filhas-de-boiuna-mãe-d’água-do-Xingú, e todos seríamos rio. Ao mesmo tempo, a presença do cybercorpo branco e sudestino de uma mulher marca a conscientização e a democratização da fala que possibilita discussões e acesso, é também ainda uma forma que essas narrativas transpassem bolhas de privilégios.

    DO BANHO DA PEDRA, DO RITO DA TRANSFORMAÇÃO, DO FIM 

    A atriz banha a pedra, essa imagem me intriga, começa o começo do fim, convoca novamente as sete mulheres do início, o projetor projeta a imagem do projeto. A usina de Belo Monte. E em mãos são entregues uma marreta e uma estrovenga. A demolição começa, é o rito de transformação, um dos princípios do teatro, cada vez mais ganhando corpo, intensamente nos traz à vista a fúria, a necessidade de transformar. Se o caos é hoje a derrubada é hoje também, o rito de transformação é agora, precisamos de vida e de esperança para hoje. Precisamos restabelecer o fluxo do rio. Utopia, necessidade, esperança se misturam. É outro caos. O espetáculo não se preocupa em derramar-se a sentimentos de afeição, ele é direto, ele é seco, ele é intenso. Quer cortar. Altamira 2042 se preocupa com o dizer, por isso, aqui aponto reflexões do acontecimento da cena, da experiência, do que se mostrou. É um espetáculo tecno-xamânico, o que é? – A Distopia.

  • A Ronda da Maravilha | Crítica de Encantado

    A Ronda da Maravilha | Crítica de Encantado

    Foto: Divulgação

    Por Lucas Oliveira
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    Entro, sento, contemplo o conforto do teatro Luiz Mendonça, a vinheta toca e a luz apaga gradativamente. Nesse momento quando a luz apaga a gente geralmente sente alguma coisa, algo vai começar tão próximo, mas eu nessa hora não senti nada. Nada esperei. Aí os bailarinos entraram, estenderam sobre o palco um mosaico de tecidos, tudo muito cuidadoso, consciente, dilatante. Ao estenderem este mosaico eles instauram o espetáculo, tercem um espaço no tempo, um outro lugar. A luz de todo palco vai vibrar, agora está ocupado por essa teia. Eu me pergunto: “Irão dançar? Irão dizer?” já passo a esperar por tudo. É tocante a sensibilidade de como se inicia o espetáculo Encantado da Cia de Lia Rodrigues, parte da programação do Festival Trema de 2022.

    Caso você que me lê, me lê interessado por saber de técnicas, deixo salientes minhas considerações ao processo de imersão proposto pelo espetáculo, tudo que eles têm está em cena, exposto: corpos, luz, tecido e som; e tudo isso é a maior completude que pode existir nesse momento. O espetáculo não só é imaginado, ele se desenvolve esteticamente nos olhos, à vista, não deixa depender que o público entre, ele insere.

    Já diante de outro lugar, os bailarinos saem, o que entra são vários corpos formando um corpo só, em silêncio, nus. Aqueles corpos que formam um corpo só, me indagam com nitidez “o que é o corpo?” O corpo somos nós, é a ferramenta e o objeto. A teia, o mosaico, o emaranhado de tecidos é o suporte para o que se quer dizer, assim como é a língua para a fala, a letra para a palavra, o gesto para o sentido. É o suporte que principia a estética e o objeto a ideia, e no movimento de se entranhar, em cinco minutos, tudo começa a ser uma coisa só.

    O corpo é cenário, que é teia, que é tecido, que é objeto. Tudo vive, tudo é vida e quer viver. Nascem a partir da entrega, da propriedade da fala do corpo, do rasgar da subjetividade mais sensível possível. Os encantados ganham matéria na interação de muitos, de todos os elementos, instauram em nós plateia um princípio de maravilha: a da possibilidade, da potencialidade, do corpo e do gesto; de modo que como uma graça, eles rodopiam e dançam, e fazem sons, figuras múltiplas na minha frente.

    O que aquelas figuras refletem? Me pergunto vidrado, com todo o corpo quente enterrado na cadeira do teatro, de olhos arregalados e duros. Os encantados são feras, humanos, sem substantivo que dê nome, ou vários que digam uma e a mesma coisa somente. Vejo ali Eguguns de África ganhando vida fora do peji, vejo rainhas, denúncias às estruturas políticas e sociais que geralmente nos predem, vejo a androgenia dos corpos, a identidade na pele, no jeito do corpo, vejo espíritos do meu ilê, ancestrais, atemporais. Partitura distópica, e o rito e o ritual.

    Embora haja uma visível vida e propriedade no espetáculo, há também transparente muita técnica nas construções feitas ao público. Cito aqui o cuidado e a ressignificação das possibilidades do uso de tecidos, seus caimentos, textura, estampa, a proposta é tão intima a si mesmo que além de ser uma coisa só, se come, se nutre de si, come quem vê, devora, provoca e convida. A maravilha mais uma vez se mostra presente. Maravilha é poder ver a vida sendo formada, o nada virando tudo, o inanimado ganhando movimento.

    A concepção de dança que a Cia de Lia Rodrigues mostra é a delicadeza de um gesto bélico, forte, denso, que lhe aguça as subjetividades. Ainda estou de corpo quente, e o que me mantém assim é essa dança pantomímica, tão contemporânea quanto primária. Atemporalizada. Esses movimentos vêm de terreiros, quilombos, de comunidades tradicionais; das transformações que o tempo promove em tudo, porque os corpos de lá estão ali trazendo às vistas o passinho da periferia, o vogue, o clássico, a rua, o rito, o movimento da vida. O rito ao rito, uma metalinguagem sensível e pouco aparente, mas ali, decisiva para aquele corpo de vários corpos que dança.

    Quanta intensidade na consciência do corpo e da dança, quanta intensidade na construção da quebra e da metamorfose. Depois da possibilidade e da mistura, da brincadeira com o sexo, da evocação do inanimado, da materialização do que não morreu e do que não viveu, depois de distorcer a física, abrir o tempo, as manifestações cessam, tudo para, tudo acalma, o corpo sai. A Cia de Lia Rodrigues recebe aplausos demorados, frenéticos e eu vibro – ainda quente e meus olhos vivos, dentro de mim o espetáculo não para, respiro fundo ainda sentado na cadeira tendo sentido o que eu senti. Caso você que me lê, me lê interessado em saber de sentimentos, concluo que quase nada do que escrevi aqui dirá muito sobre este espetáculo, compartilhar das presenças das cênicas avassala a opinião de qualquer crítico, de qualquer gosto e nem é sobre gostar. Após alguns minutos saio discretamente do teatro, desviando conhecidos e desconhecidos, lá fora chove, é outono, mas nada me limita, depois de tudo o que vi e vivi, vou pela chuva mesmo.

  • BASTA | Crítica de Kalash: Ensaio Sobre a Extinção do Outro

    BASTA | Crítica de Kalash: Ensaio Sobre a Extinção do Outro

    Foto: Divulgação

    Por Matheus Campos
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com a morte, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da curiosidade. Pagamos, pois, bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar.— Michel de Montaigne, em Os Ensaios

    Para Montaigne, a humanidade e seus múltiplos processos de desenvolvimentos e relacionamentos, cada vez mais complexos, refletiam a grandiosidade e a grande  miséria do homem e, nesse percurso de desenvolvimento, cada indivíduo passa por uma série de impulsos de vontades com consequências severas demais até que por um instante surja um facho resoluto de razão e lucidez. Pequenas criaturas que almejam a grandeza em sua pequenez. 

    Muito embora o filósofo, político e humanista francês tenha vivido no século XVI, suas concepções sobre a humanidade se manifestam contemporaneamente inquietantes e tangem as mais diversas áreas e eventos. Dentro os eventos que podem e fazem intersecção com os pensamentos de Montaigne, surge à luz dos palcos do teatro Hermilo Borba Filho, pela 10ª edição do festival Trema, o espetáculo Kalash — Ensaio Sobre a Extinção do Outro.

    Com a direção e dramaturgia de Quiercles Santana, o espetáculo traça duras críticas e ironias sobre o hodierno caótico que nos circunda, a começar por seu título. O termo “Kalash”, utilizado no título, faz carinhosamente referência ao senhor Mikhail T. Kalashnikov, considerado como o homem mais letal do mundo, pois ele é o inventor do rifle de assalto Kalashnikov, muito conhecido como AK-47.

    Simbolicamente, o grupo teatral fez uma escolha perspicaz ao escolher o termo para compor seu título, pois traz de imediato a figura da letalidade do homem, não só do inventor, mas de tantos outros homens letais espalhados pelo globo e história, inclusive figuras presidenciais. Nessa perspectiva assertiva, o espetáculo busca tecer duras críticas à realidade por meio de diferentes estruturas representativas. 

    Algo que marca o centro da teatralidade, além de sua criticidade, é o nítido e profundo gole  nos estudos de Brecht e suas dramaturgias, pois é inegável a técnica das quebras brechtianas durante a apresentação. Contudo, algumas escolhas, por buscar tanto a didatização que Brecht buscava, acabam quase assumindo a visão de que os espectadores não são capazes de compreender o desenrolar das tramas e o explicar de determinadas escolhas para o espetáculo — perdão, como bem disseram, não se trata de um espetáculo, é um ensaio — assumem um tom marcado de falsa espontaneidade e empregam um tom cansativo.

    Evidentemente, apesar de alguns pontos pecarem pelo excesso, Kalash é primoroso em inserir didaticamente o cientificismo das ciências humanas e sociais para o público, trazendo ideias linguístico-semióticas como as de Rolland Barthes e a criticidade pós-moderna do filósofo camaronês Achille Mbembe. O diálogo entre realidade, arte e estudos sociais acadêmicos é um ponto crucial no entrelace da proposta e é esse ponto que garante ao espetáculo sua coesão.

    Entre a glória humana e a desgraça promovida pela glória humana, os prolegômenos de Kalash dialogam com Blaise Pascal, em sua obra “Pensamentos”, no ponto de que o pensador para a dualidade ontológica. A grandeza do homem consistindo, sobretudo, em sua capacidade de pensar e reconhecer a sua natureza e existência, elevando a si como o ser mais desenvolvido do universo; porém, em sua consciência sobre si e sua capacidade, cai sobre seu próprio ego e aos poucos arquiteta sua própria ruína.

    E por trazer tal reflexão, o espetáculo é verborrágico. Paradoxalmente, a desgraça da humanidade consiste no aspecto puro e simples de que cada vez mais caminhamos para a representação coletiva e perfeita da figura de Narciso, mas a necessidade urgente de sermos mais narcísicos e falarmos sobre nós mesmos e é disso que se trata. Um espetáculo sobre o homem falando do homem.

    Mas não apenas falando do homem, há de considerar as suas criações, os seus simbolismos, seus manuais axiológicos e a sobreposição da moral em relação à hepática ética. Dentre um diálogo coesivo de paletas de cores mais sombrias na iluminação,  figurinos pulsantes como o sangue e recursos de imagem e vídeo perturbadores, quem dá a ordem e chama para perto, antes de mais nada, ainda é a palavra. 

    Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o Universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco.
    — Blaise Pascal, em Pensamentos

    É a palavra que salta entre as cenas e as quebras da quarta parede, é a palavra que grita entre os corpos dos artistas em cena, é a palavra que escancara o doente sistema capitalista em que vivemos; as articulações hegemônicas do poder; e as veias repletas de veneno, como a necropolítica, que se espalha entre as vigas e estruturas de espaços do legislativo, judiciário e executivo, até que injetam a peçonha através da canetada de um parlamentar, um acordo econômico ou uma bala “perdida”. É por meio dela, a palavra, que se reconhece os tempos distópicos em que vivemos e em como, mesmo a história sendo cíclica, ainda somos cegos, surdos e definitivamente mudos, mudos com uma palavra atravessada na garganta, mudos pela icônica e iconográfica palavra que saltou pelas vigas do teatro Hermilo Borba Filho através de Kalash e que se esparrama pelo chão, junto ao sangue de mais alguém morto pelo uso de uma Kalashnikov. BASTA!

  • O Consueto no Tablado | Crítica de Bando: Dança que Ninguém Quer Ver

    O Consueto no Tablado | Crítica de Bando: Dança que Ninguém Quer Ver

    Foto: Divulgação

    Por Matheus Campos
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!
    — Fiedrich Nietzsche

    Dentre os traços que circunscrevemos com nossos corpos em nossas vidas-estradas, pergunto-me: quando de fato não dancei? Seja figurativamente ou literalmente, em algum momento dancei. Cada dia dançamos, dançamos muito.

    Mas qual seria o conceito de dança? Para o filósofo francês Merleau-Ponty “a dança se desenvolve num espaço sem objetivos e sem direções, é uma suspensão da nossa história, o sujeito e seu mundo na dança não se opõem mais, não se destacam mais um sobre o outro”. A antropóloga estadunidense, Judith Hanna, diz que é uma ação humana constituída de movimentos motores diferenciados dos usuais, esses movimentos possuem uma intenção, estão sob uma perspectiva cultural e consequentemente atendem a uma valoração estético-artística. 

    Pensando por essa perspectiva, o que seria, portanto, uma dança que ninguém quer ver? Subindo aos palcos do Teatro Apolo pela 10ª edição do festival Trema, o grupo GIRADANÇA apresentou seu espetáculo coreográfico “BANDO: DANÇA QUE NINGUÉM QUER VER”. O momento artístico, sob a criação cenográfica de Mathieu Duvignaud, concepção e direção coreográfica de Alexandre Américo, ao contrário do esperado da maioria dos espetáculos da área, quebra o monótono dos corpos já conhecidos e dos passos já esperados.

    No tablado com poucos objetos para o uso do processo de cena e circunscrevendo  movimentos pouco esperados pelo público, o espetáculo de dança faz jus ao seu nome. O termo “bando” dentre os significados, o mais comum se refere ao agrupamento de indivíduos pertencentes ao mesmo grupo e espécie. De fato isso ocorre, a proposta do coletivo, antes de mais nada é nitidamente trazer à tona a pluralidade dos corpos e de histórias que esses corpos carregam, quebrando uma estética arcaico-clássica inerente ao pensamento das massas, quando provocado a pensar sobre a dança e os corpos que executam essa arte.

    Além disso, durante os quinze primeiros minutos de início do espetáculo, paira no ar a questão “o que é uma dança que ninguém quer ver?” e como um estalo, no décimo sexto minuto de espetáculo, aqueles que não ainda não haviam encontrado a resposta, com um estalo, encontram. As portas do teatro abriram, a plateia entrou e os atores já estão no palco, aparentemente movendo alguns objetos que serão utilizados em cena. Quase ninguém repara no que está acontecendo. 

    Seis minutos após a plateia entrar, o elenco continuou mexendo nos objetos em cima do palco e a plateia continuou ignorando o que acontecia ali e as pessoas conversavam entre si. Dez minutos após a entrada e algumas das pessoas  que conversavam resolveram assistir o processo de organização no palco. Quinze minutos depois e “Hey! Agora eu entendi!”, aqueles que ainda conversavam entendem o espetáculo começou desde que entraram pela porta.

    Um movimento coreográfico com intenção, bagagem cultural e valor estético era o que estava sobre o palco do Teatro Apolo, mas não cumpria a estética esperada. A mimetização da disputa entre corpos, o processo de exploração dos planos em um palco, a brincadeira no processo de construção de algo ainda não nominado, o improvisar corporal  em face de desafios esperados ou não, a mostra viva do que é um ensaio… era isso que pulsava nos tablados retumbantes do teatro e vibrava para a plateia. 

    Espera-se normalmente na arte, normalmente, uma mimetização do real; porém, que essa mimetização traga de alguma forma a perspectiva de um belo hegemônico: músicas bem entoadas, passos com graça, enredos que provoquem risadas e suspiros. O grupo GIRADANÇA propõe justamente o oposto, a mimetização do real no vigor do real, o tempo repetitivo, os passos dolorosos, os tons que tonteiam as cabeças e ouvidos, múltiplos processos executados pelos corpos dentro do hodierno.A arte pode ser brutal, às vezes explora o que para alguns seja talvez a “estética do grotesco”, mas ainda assim não deixa de ser arte e jamais abandona o seu ar de beleza. Ao incomodar e trazer uma dança que não se espera ver, o espetáculo circunscreve movimentos que exploram as impossibilidades do outro e traça novos horizontes de uma perspectiva da dança não caricatamente arcaica.

  • Manifesto Marginal | Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré

    Manifesto Marginal | Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré

    Foto: Vinícius Eliziário

    Por Ananda Neres
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    “Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro – e essa é uma atitude política.” (Augusto Boal)

    Mensagens encontradas em garrafas estão no imaginário popular. Geralmente, são cartas para um futuro ou para um amor, um mapa do tesouro ou um pedido de socorro. Que mensagens são possíveis encontrar numa garrafa pet na beira de uma maré do Recife?

    Para descobrir, adentro o teatro Hermilo Borba Filho, no chão, centenas de conchas guiam o caminho e delimitam o espaço cênico. O aroma e os sons da sala me transportam para uma outra atmosfera. Transporto o meu olhar para a cena, nela, cinco pessoas se apinham numa pequena escada-barco, ao fundo, um imenso painel-barraco compõe a paisagem. Estou na maré.

    Vamos conhecendo as narrativas a partir de monólogos. Neles, os temas são diversos, de extermínio da população pela polícia à exploração do trabalho, de racismo ao estupro, das questões de gênero ao vício, as mazelas diárias das periferias são denunciadas em cena. Possuem em comum a violência e as populações majoritariamente negras à margem, como protagonistas. Além disso, sobressai aos ouvidos o texto carregado de oralidade, numa prosódia sonora e poética.

    A multiplicidade na temática dos monólogos também se faz presente em suas potencialidades expressivas e técnicas. Na cena de HBlynda Morais, o excesso de carga dramática parece não se desenvolver. O tom agudo choroso é assumido, e, nele, não há mudança na entonação. No teatro, além da emoção, é necessária a palavra. Elemento tão valorizado e trabalhado no texto de Leite, mas, por muitas vezes incompreensível na cena em questão. No mesmo sentido, no solo de Fagner Felix, há uma fragilidade no dizer e no corporificar a palavra. Destoando do vigor do mangue. 

    Contudo, se na construção dos monólogos são privilegiadas as denúncias, por outro lado, nas cenas coletivas busca-se reescrever essas narrativas de racismo e violência. Numa das cenas mais poéticas, o grupo evoca e reverencia grandes personalidades negras do campo das artes a nível nacional, mas, principalmente, a nível estadual. Artistas pernambucanos contemporâneos que estão hoje na lida para produzir e viver de arte. Marginais. Pela negrura da pele, pelo gênero, pelo poder aquisitivo. Assume-se a marginalidade para subverter seu pejorativo sentido usual. Às margens, há vida e cultura, há trabalhadores e sonhos. Artistas que elaboram novas narrativas, com códigos, símbolos e gramáticas próprias. Uma poética marginal. 

    No coletivo das Narrativas…., as poucas fragilidades são superadas.  O que aponta para uma metodologia clara: no coletivo somos mais fortes.

    Como não poderia ser de outra forma ao tratarmos de populações periféricas, além da questão racial, o trabalho também é um tema em destaque. Na pandemia global da covid-19, incontáveis artistas perderam o sustento, dentro da estatística está Anderson Leite, autor da dramaturgia, ator e encenador do espetáculo. Sem possibilidade de dar prosseguimento ao seu fazer artístico pelos fechamentos de casas de espetáculo e pela ausência de um auxílio emergencial efetivo por parte do Estado para a categoria em que está inserido, ele volta à família na comunidade da Ponte do Pina, em Recife, e passa a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu. 

    É deste contexto que nasce o texto. Na margem, à margem. Parte da pesquisa POÉTICà MARGEM, do Grupo São Gens. Na boca de um dos personagens, coincidentemente ou não interpretado pelo autor, também ficamos sabendo da pandemia e seus efeitos no trabalhador, que precisou se arriscar. A cidade estava parada por decreto e ele diz algo como “mesmo sem sentir gosto, a família precisa se alimentar”. Fica nítido qual parte da cidade pôde parar. 

    Com hospitais lotados, sem auxílio, com salário reduzido, com possibilidade de ainda assim perder o emprego, o que resta ao assalariado, ao ambulante, ao autônomo? Morrer de gripe ou morrer de fome? A política burguesa do #FicaEmCasa colocou nas mãos dos trabalhadores a responsabilidade que era do Estado e buscou criminalizar qualquer tentativa de movimento operário que reivindicasse condições de vida e sobrevivência nesse período.

    Em outro momento, numa cena coletiva, o próprio labor artístico é colocado em debate. O que pode um grupo de teatro marginal que não frequentou universidade? Tem a mesma condição aquele que vai ao ensaio com fome ou não tem dinheiro suficiente para se locomover até o local? Como consumir arte sem políticas públicas que subsidiem o acesso? Apresentado na programação gratuita do festival Trema!, financiado pelo Funcultura, Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré emociona e incomoda ao denunciar o que se insiste em ignorar. Ao passo em que revigora,  ao impulsionar e celebrar a construção de novas narrativas.

  • Rosemary Josefa Cardoso | Crítica de Mi Madre

    Rosemary Josefa Cardoso | Crítica de Mi Madre

    Foto: Divulgação

    Por Lucas Oliveira
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Abril de 2022

    Uma mulher

    Ao entrar no teatro, no palco está a atriz Jhanaina Gomes, olhos em algum horizonte, um vestido vermelho – sangue – e pontinhos pretos. Sentada numa cadeira antiga, ao lado da mesinha antiga, com um jarrinho de flores novas. Vermelhas, como o vestido, como o batom da boca, como o sangue. Tudo começa contido, é a luz, a atriz, o cenário e o público entrando em silencioso respeito a tudo aquilo. 

    Tudo é singelo. Sessão intimista, de poucos olhares da plateia, ela começa.

    Levanta Jhanaina, chega à boca do palco sem limites e se apresenta, diz que é atriz, diz que vai contar história e a história começa pra dentro de si mesma, não é sobre o outro, é sobre si. A atriz, a personagem, uma mulher que extrapola qualquer tipo de mesmice, o corpo vivíssimo convidando o público a viver com ela a memória.

    As mãos de Jhanaina ganham foco a parte, junto com a consciência de corpa viva, corpo-memória e uma voz potente que se emociona e vibra, seu poder de expressão imerge o público à cena, e no jogo vivido, é um aspecto cativante e bem trabalhado na construção da atuação e do espetáculo.

    Jhanaina fala abertamente e direciona sua súplica – “Se eu cair você me levanta?” – do que ela fala?  Meu eu se pergunta. Jhanaina cai, o público a levanta. Ali eu ainda não sabia, mas Jhanaina ia falar da dor, da ferida, da solidão, do que é ancestral e dói.

    Quatro mulheres

    Se expande a luz, se expande o corpo, se expande a história. Tudo se expande dentro de nós. O movimento da iluminação diz e indica muitos caminhos na cena, ele é interessante, parece ser a extensão daquele corpo-memória, leva a quem assiste uma emoção de iluminar, propõe o desenho dos olhos, afaga a vista e é gostoso ver. A luz também marca o foco de diálogo da personagem de si com as outras de si. O público é usado como base para as personagens, essa visão contemporânea da plateia adensa e quebra qualquer barreira que pode existir, é a história dizendo que Jhanaina, Benedita, Ceça e Maria; as quatro mulheres, também somos nós.

    Nas histórias que se sobressaltam, alguns estigmas são retratados em cena, além de afeto, Jhanaina, Mãe e avós são uma denuncia, um grito, uma oralização necessária. Denuncia-se o racismo a mulher negra, a violência física, psicológica, a inferiorização, as poucas formas de resistência. Uma herança oprimida nesse copo-memória cansado de carregar o que não precisa nem deve ser seu, tomando de si mesma, comendo-se para fortalecer-se. 

    Quatro mulheres latino-americanas

    A América latina está em vários lugares do espetáculo, desde o jeito cadenciado de pisar da atriz, os sapatos fazendo compasso, ditando o ritmo da cena, como uma dança flamenca, vivendo o compasso de uma música que fale sobre a vida. 

    Até na presença daquelas mulheres-histórias-memórias que nunca estiveram ali, repare que isso é uma prova que aos poucos os holofotes dos palcos do Recife vão ganhando representações de história e vida de quem nunca fora representadas, esse movimento contemporâneo, Decolonial, latino-americano é uma grande potência dentro do espetáculo, uma vez, que cumpre um caminho contra o apagamento projetado à história, à ancestralidade, às mulheres e os estigmas de marginalização neste lugar colonizado. Vale salientar que essa tamanha força de protagonismo das narrativas marginalizadas pelo patriarcado está presente a partir de identidades quem tomam consciência do seu processo de autonomia, como em outros espetáculos e trago como exemplo “Luzir é Negro”, de Marconi Bispo e do Teatro de Fronteira.

    Mas quando a gente se dá conta que não se trata somente daquela história em si, mas que é aquela história que exemplifica o terrível projeto do nosso apagamento, é que o espetáculo se expande ainda mais, toma a nossa história pra si e diz abertamente aos olhos, ouvidos e outros sentidos: Aquelas são quatro mulheres latino-americanas.

    Cinco mulheres latino-americanas da cidade do Recife

    Eu acabo por pensar en mi madre, Rosemary Josefa Cardoso. Que é também uma mulher Latino-americana da cidade do Recife. Preta. Que também escuta Odair José, e chora quando toca “Itamarcá”, de Reginaldo Rossi. A história da minha mãe também se mistura com aquelas ali por muitos e por outros motivos, motivos da violência, do abandono, da solidão, de ter que ser mais forte do que pode, de ter que se abandonar por tudo, menos por si; de sempre perder e não se acostumar com ganhar. Calculo rapidamente. Contando com a minha mãe, na verdade são Cinco. Cinco mulheres latino-americanas da cidade do Recife. Que as vejo nitidamente no palco. Jhanaina, Benedita, Maria e Ceça vestidas de vestido vermelho – sangue –, e minha mãe pairando na subjetividade da cena. Mas não só paira minha mãe, infelizmente, cabem muitas. Cabem minha vó, e a mãe e a vó dela, cabe Malu – que é mais que amiga e foi assistir a peça comigo – e a mãe a vó dela também. Cabem as minhas outras amigas e as amigas delas. Cabem no espetáculo a dor de todas as mulheres da América Latina.

    Mas eis que a atriz não se resume na dor, o espetáculo é um retorno a si, é um retorno à ancestralidade de si mesma. Ela se despe, ela transborda, ela se derrama: a sua história, as suas outras mulheres. Rasga o espaço e o tempo, ingressa em um plano mítico e tão próprio. Ela agora é mais crua ainda, cada vez mais dentro. Ela é Transtemporal e dança, Mulher Camará e Cetés. A história não acabada, somente acaba o espetáculo, que me extasia e me emociona.

    “a vida é um segredo, um dia se desvendará”.

  • Tecendo Amanhãs ou ‘a peleja pela busca de um título de uma crítica que diz menos do que o espetáculo que já diz pouco’ | Crítica de Estudo N°1 – Morte e Vida

    Tecendo Amanhãs ou ‘a peleja pela busca de um título de uma crítica que diz menos do que o espetáculo que já diz pouco’ | Crítica de Estudo N°1 – Morte e Vida

    Foto: Vitor Pessoa/Divulgação

    Por Luiz Diego Garcia
    Recife, Março de 2022

    Tecendo a Manhã
    Um galo sozinho não tece uma manhã:
    ele precisará sempre de outros galos.
    De um que apanhe esse grito que ele
    e o lance a outro; de um outro galo
    que apanhe o grito de um galo antes
    e o lance a outro; e de outros galos
    que com muitos outros galos se cruzem
    os fios de sol de seus gritos de galo,
    para que a manhã, desde uma teia tênue,
    se vá tecendo, entre todos os galos.
    João Cabral de Melo Neto

    O cenário é: Mamãe nasceu numa cidade no interior da Paraíba que hoje tem cerca de quinze mil habitantes; há 52 anos talvez tivesse menos da metade, em meio de onze irmãos (todos começando com a letra E – menos minha tia Geralda, que vovô esqueceu o nome que vovó tinha mandado ele registrar no cartório, e foi Geralda mesmo;) Paulista fica no sertão, depois de Patos, há oito horas de Recife. 

    O cenário é: Aos 16, mamãe se mudou pra João Pessoa, capital da Paraíba, pra morar com uma prima, pra conseguir um emprego, pra tentar a vida. Papai estava por lá, não sei se a passeio ou a trabalho. Eles começaram a namorar e logo vieram morar em Recife, onde papai residia. Casaram-se, mamãe engravidou de mim aos 20, e se separaram depois de 16 anos.

    O cenário é: Mamãe trabalhou em shopping a vida toda, vendedora, lembro de crescer vendo mamãe trabalhando muitíssimo pra garantir o natal da gente, e sempre parecer cansada na noite do menino jesus. Mamãe teve minha irmã aos 39, e seguiu trabalhando como vendedora. Minha irmã agora mais crescida, mamãe decidiu ir morar longe, onde meu padrasto vive, ele é daqui de Recife e já tinha experiência numa grande capital da Europa como motoboy, ou cozinheiro, ou garçom; meios de ganhar a vida noutro canto, meios de tentar ganhar a vida num lugar onde a vida pareça mais ganhável.  

    O cenário é: Mamãe, aos 52 anos, agora está morando a um oceano de distância. Severina que emigra.

    Morte e Vida. Estudo Número 1.

    Num processo de desvelar processos, o Grupo Magiluth, apresenta o seu estudo/espetáculo sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina é um marco na literatura brasileira, um poema escrito com sangue-tinta, sobre tantos Severinos que saem de onde nasceram em busca de qualquer coisa que não seja a fome. Luiz Fernando Marques e Rodrigo Mercadante se juntam ao grupo numa parceria potente para investigar – antes de tudo o Estudo No 1 é uma investigação – direções, dramaturgias, concretudes, pedras, maçãs, cadeiras, pedras, cortinas, tristezas, angústias e, principalmente, migrações. Climáticas, políticas e avassaladoramente cíclicas, a investigação começa também na metateatralização do processo que se investiga a si; fazendo o que faz de melhor, o Magiluth propõe-se jogar. Jogar o jogo do teatro e nos contar das regras, estamos em uníssono participando desse pacto pela morte e vida. 

    O Estudo começa diversas vezes, mas sempre já tendo começado. Como se o início do seu ciclo estivesse há muito anos atrás de si, o Estudo se mostra parte de si. Existe o espetáculo e o espetacular espetaculável. Como se investiga um teatro – uns teatros, o teatro, os teatros – através do mundo inteiro? Como pensar todos os moldes e desenlaces que o capitalismo massacra há tantos anos? Como abordar as infinitas possibilidades poéticas de conexões infinitas das potencialidades infinitas da obra migratória de João Cabral? 

    O Estudo faz questão de mostrar que tenta, mas deixa claro que não consegue, que não se pretende conseguir (a repetição do trecho da obra mas isso ainda diz pouco é levada à uma constante consciência de que não há esgotamento nem possibilidade de restrição das temáticas abordadas, que aqui estamos presenciando uma chuva de ideias práticas e executáveis sobre a obra), e que a luta aplicada na tentativa de explorar inúmeros campos com sua arte, faz-se complexo e intrincado ao passo que muitíssimo simples na sua intencionalidade.

    Num pot-pourri mise-en-scènico, a direção de Luiz Fernando Marques encontra um caminho de caminhos, tudo é plural e polifônico, e polissêmico, e poliglota, e polêmico. O trabalho que sai do palco, e invade um pedaço curto da plateia está sempre em busca de si. Um autor que escreve sobre sua busca de palavras, um artista que pinta misturando cores à procura daquela cor, mas que ambos já estão criando ao passo que tentam (e conseguem) criar. O Magiluth não teme o processo, nem o jogo, nunca o temeu. Talvez esse seja o trabalho de complexidade de jogo que mais se encaixe subsequentemente à primorosa montagem de Apenas o Fim do Mundo (O brusco MA do Magiluth | Crítica de “Apenas o Fim do Mundo” – Vendo Teatro), a verborragia aqui presente em sua repetição insiste em nos fazer ouvir a Palavra, mais uma vez. Como no texto de Jean-Luc Lagarce, aqui no Estudo No 1, também somos empurrados e espremidos pela Palavra. No entanto, em suas poucas, e diga-se de passagem ilustres, menções e autorreferências, o Magiluth sabe o teatro que quer fazer, entende onde está o núcleo da sua potência teatral, e faz uso de metateatro de maneira jocosa, ímpar e ativa: quando propõe estudar migrações, também o faz com identidades de seus membros.

    Bruno Parmera, mais inteiro do que nunca. Não só o ator se mostra em completude da sua cena, mas também há um rapport especial em seus momentos solo; no momento de investigação do seu estudo de si, Parmera estabelece uma cena deveras simples: uma pesquisa numa ferramenta de busca de imagens com mais de 15 bilhões de imagens na internet. Ele tenta identificar-se no mundo, por aproximação visual. Digita homem, e os homens que aparecem não lhe parecem. Digita homem brasileiro, e o que brota também não lhe parece. Quando chega em homem brasileiro nordestino a cena catapulta-se e explode: Parmera vibra ironia, desprezo, pedra, cadeira, maçã, decepção, gibão, facão, pistola, e adereços. Tudo aquilo que aquelas imagens trazem e carregam de um dos nordestes chapados e infrutíferos advindas principalmente de uma visão xenofóbica sudestina da existência heterogênea da nossa região, fazendo com que a investigação de Parmera em cena se torne cada vez mais reveladora do Brasil, mesmo sendo, a priori, uma investigação de si. Então os adjetivos começam a crescer em número, quando se aproxima de homem brasileiro nordestino pernambucano magro e gay a cena implode aqui: gibão rosa, a resistência do Cangagay; mas isso ainda diz pouco. Quem é Parmera? Ele se encontra nesse medley antropofágico de bilhões de imagens, e também ele não está ali. A cena amarra-se por fim numa referência muito específica: uma projeção de um vídeo de um lavrador de cana dançando Billie Jean do Michael Jackson, Parmera dança junto, e como dança. E a cena volta a escangalhar-se, e aqui me permito subtrair um pequeno trecho, o spoiler da visualidade dessa cena poderia vir a estragar a experiência; mas deixo claro que a imagem gravada no fundo dos olhos, é difícil de explicar, mas de uma riqueza inigualável.

    Após acompanharmos as diversas tentativas de início desse estudioso Estudo, fomos bombardeados por podcasts, músicas, cenas inteiras, luzes, projeções, microfones, informações, teorias. E Erivaldo Oliveira põe-se a investigar (junto com a forte referência de Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar que permeia todo o espetáculo) estar na pele de um homem de trinta e poucos anos que trabalha como entregador de lanches para um aplicativo de celular. Talvez o trecho mais angustiante do espetáculo, onde somos atropelados pela Palavra (com dados sobre valores de terras e quilometragens percorríveis, com a impossibilidade daquele homem, em vida, conseguir um metro quadrado de terra pra chamar de seu, mesmo sabendo que “O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer “isto é meu”, […] , foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: Não, você é um impostor.” Jean-Jacques Rousseau ), onde o palco vira uma corrida sem pódio em busca de sobrevivência, onde a morte choca para logo em seguida se tornar banal e corriqueira.

    No seu ato final, Deus Ex-Magiluth.

    Plateia dividida em direita e esquerda, presenciamos a mais longa cena do Estudo. Um debate, que se propõe metadramatúrgico e brilhantemente escrito, leva à cena dois pólos à tentativa de um acordo pela humanidade, pela salvação do planeta. Como salvar o planeta de seu capitalismo desenfreado? Como remediar o avanço galopante da extinção da raça humana? Não parece haver acordo dentro dos moldes conhecidos do lucro. 

    Magiluth Ex-Machina.

    Um astronauta pernambucano entra em cena. Lucas Torres se faz Poesia. Arte. Forma subjetiva de ressignificar possibilidades não vistas pela razão. No final apoteótico, escutamos apopléticos as palavras de João Cabral de Melo Neto gravadas à repetição exaustiva, as referências Severinas caminham pelas cabeças das pessoas todas presentes, o elenco observa, e o Astronauta Pernambucano Ex-Machina Deus Magiluth se vai. 

    O cenário é: um crítico tentando terminar de escrever uma crítica que lhe parece tão infindável quanto as possiblidades de significados da obra Estudo Número 1 – Morte e Vida. A sensação de que mas isso ainda diz pouco paira no ar. Ele lembra da sua mamãe, sem muito mais o que dizer, além da saudade. Torcendo pela vida dessa caminhada Severina da humanidade, ele se despede com suor no rosto.

  • Digressão em Lugar Algum | Crítica de Valsa N° 6

    Digressão em Lugar Algum | Crítica de Valsa N° 6

    Foto: Divulgação

    Por Matheus Campos
    Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
    Recife, Janeiro de 2022

    “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”
    Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

    Dentre as tantas perspectivas apontadas no dicionário para a palavra “memória”, destaca-se uma em particular: “faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos”. Por esse sentido, se seguirmos a concepção apontada conforme o pai dos curiosos e fizermos uma pequena reflexão, a memória seria, em síntese, o bem mais precioso que um ser humano possui.

    Seria por meio dessa capacidade de armazenar e catalogar determinados fatos experimentados ou estudados que o ser humano sintetiza sua identidade particular e social. Por essa razão, entende-se o gatilho chave por trás da obra do brilhantíssimo Machado de Assis, de maneira que é nítida a necessidade do autor defunto, ou melhor, defunto autor — Brás Cubas — em contar sobre suas vivências, afinal, talvez até os mortos sintam a necessidade de entender quem são, ainda que sua existência pertença ao não palpável e provável.

    Seguindo um caminho inicialmente similar aos inícios da obra de Machado, em apresentação para a vigésima oitava edição do Janeiro de Grandes espetáculos,houve a reprodução da obra rodriguiana, Valsa nº 6. O único monólogo produzido pelo autor pernambucano com tendenciosidade carioca, Nelson Rodrigues, ganhou vida nos palcos do Teatro de Santa Isabel, sob a direção de Claudio Torres Gonzaga e a atuação de  Luisa Thiré.

    O texto traz em seu enredo a história de uma narradora quase-defunta, ou melhor, uma quase-defunta narradora, Sônia, que em seus 15 anos foi assassinada inesperadamente, enquanto tocava a Valsa nº 6, de Chopin. A trama rodriguiana se desenvolve através do não-espaço que habita a consciência desvanecendo de uma adolescente apunhalada pelas costas. Entre o choque do iminente fim e o instinto de tudo que é vivo se afastar da morte, a protagonista, durante dois atos, procura montar o dificílimo quebra-cabeças capaz de revelar quem ela é e o que a levou ao súbito fim.  

    Seguindo a perspectiva rodriguiana, alguns elementos são marcantes na obra, de forma que qualquer conhecedor mínimo de Nelson Rodrigues, ao assistir um pouco da obra, diria com firmeza: “Isso é coisa de Nelson. Batata que é!”. Isso significa, é claro, que  algumas temáticas são tangenciadas ao decorrer da trama, como: a loucura, a traição, a descoberta dos desejos sexuais,  a tendenciosidade positivista nas visões particulares das personagens masculinas sobre o mundo e delineados caricatos de uma sociedade regida pelo caótico patriarcado.

    Porém, um elemento nessa obra se sobressai aos demais: é um monólogo. De forma que não há outros atores circulando pelo espaço cênico, nem o famoso que habita nas demais obras rodriguianas, o “escada”, para garantir um momento de sobressalto da protagonista ou de maior tensão. Toda a atenção do público para o enredo e suas nuances dependem de um único elemento, a atriz solo no palco.

    Para o alívio geral, a atriz Luisa Thiré mais que empenhou seus estudos no monólogo do Anjo Pornográfico, texto e atriz eram um só no palco e estavam explícitas as nuances entre a transição das personagens que pairavam as lembranças confusas de Sônia e a própria Sônia. A montagem, portanto, ainda que difícil, prendeu os olhos irrequietos da plateia e forçou os sempre inconvenientes flashes das câmeras a cessarem.

    Além disso, o figurino elaborado Teca Fichinski somados à direção de movimento de Kika Freire e a iluminação de Luís Paulo Neném atuam como elementos coesivos para a imersão do não-espaço criado pelo roteiro de Nelson. Esses recursos — figurino, movimento e luz —  somados à mixagem de som da valsa nº 6, por vezes, agiram como suportes interpretativos para atuação de Thiré, ao conferirem uma reafirmação dos planos em que a personagem está vagando — delírio, loucura e memória — e uma falsa quebra da quarta parede.

    Em uma realidade exaustiva, pós-pandêmica e rendida às farsas comerciais que circundam a terceira década dos anos dois mil, a encenação de Nelson é atemporal, ainda que um pouco arcaica para os olhos do crítico que vos escreve, e definitivamente viva, sob a atuação apaixonante de Thiré. Ao final, aplausos, suspiros de alívio por sair do sufocante e hermético universo rodriguiano e a felicidade em ver a satisfação de  uma artista ao fazer seu trabalho no lugar de direito: o palco presencial.