Em qual padrão cabe teu desejo? | Crítica de Deusas da Noite

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Recife, Janeiro de 2020

Por Matheus Campos

Em qual padrão cabe teu desejo?

  “O que vão dizer de nós?
Seus pais, Deus e coisas tais
Quando ouvirem rumores do nosso amor
Baby, eu já cansei de me esconder
Entre olhares, sussurros com você
Somos dois homens e nada mais”
— Johnny Hooker

Na criação musical “Flutua”, do pernambucano Johnny Hooker, o sentimento de se estar preso ganha vozes, faces e corpos, pois durante o desenvolver da música as ações e reflexos das amarras sociais, exercidas sobre as particularidades de cada indivíduo, são evidenciadas. Entretanto, durante a música, torna-se claro que apesar dos ideais repressores do meio social o qual vivemos, é necessário se desfazer das amarras arcaicas e viver conforme a particular maneira que a pessoa melhor se sentir.

Nessa mesma perspectiva, de certo modo, a obra teatral “Deusas da Noite”, com texto e direção de Albermar Araújo, trata, nas entrelinhas, sobre os desafios e constantes obstáculos do ser humano de viver, assumir e aceitar quem é, seja por problemas enraizados na sociedade e/ou, de forma mais particular, nas estruturas familiares de cada indivíduo.

O espetáculo além de ser uma clara homenagem às Drags e Transformistas que colorem as noites, talvez também ganhe o título de “Deusas da Noite”, porque brinca com as formas humanas e faz aqueles corpos-atores performarem em múltiplas formas, dentre elas a de deusas olímpicas. O espetáculo conta com quatro atores e faz uma escolha da transição de personas performadas por cena, assim tornando possível que três dos quatro atores assumam quatro diferentes personagens. (Um fator que marca a transição das cenas e mudanças dos personagens, durante o desenvolver da dramaturgia, é a iluminação (Luciana Raposo) que ao variar de tonalidades e paletas, conforme as necessidades dramáticas de cada personagem e cena.)

Dentre o elenco, temos Jefferson Nascimento que dá corpo e voz a Atena — deusa da sabedoria —, a Maria Antonieta, a sua persona Drag: Elvira Terremoto e o próprio Jefferson Nascimento; Francisco Johan como Ártemis — deusa da caça e da lua —, Julieta Capuleto — da criação de William Shakespeare —, sua persona Drag Gina Purpurina e como ele mesmo,  Francisco; e o ator José Aurino Xavier que dá espaço para Afrodite — deusa do amor e do sexo —, Maria Bonita e a sua face desnuda como José Aurino Xavier. Os corpos desses atores se moldam e brincam com a história. A concretude dos sexos biológicos se desfaz, vira pó, e diante da plateia, corpos antes biologicamente masculinos assumem múltiplas formas/gêneros/sexos, são entidades dramáticas que contam com o auxílio de adereços e figurinos (Jefferson Nascimento) os quais contrastam com a casualidade estética do simples proscênio (André Ramos) para que cada personagem se encontre e assuma o palco. 

Em determinados momentos as paredes imaginárias são quebradas, personagens saem à fora e os corpos masculinos revelam seus silêncios. Como fora dito, os atores se desnudam de técnicas e acessórios dramáticos e revelam seus nomes, histórias, marcas presas na alma e preconceitos são descortinados, os atores, como eles mesmos — ainda que traga um “que” de elemento dramático e performativo —, quebram a quarta parede, revelam suas histórias e trajetórias e até os intelectualmente surdos e cegos conseguem, através dos relatos, ouvir e ver o quão patriarcalista e heterosexista tóxica a sociedade é. É interessante ver

 Além disso, existe mais um corpo-ator, como já foi mencionado, além das drag-deusas, há o quarto ator, que assume dramaticamente a face do desejo e ao contrário dos demais que se travestem, este se despe — literalmente — e mostra a simplicidade dos quereres. A alegação é simples: desejar é humano, é natural, e o que há de errado em desejar e ter e ser o que se deseja, se é natural? Quem mal tem o desejo se não há mal a ninguém? Se é errado, é pecado, o livre desejo de se permitir a desejar e errar, talvez o erro esteja em não se permitir.

 Assim, ainda que por momentos as opções estéticas e performáticas, da narrativa interpretada pelos atores, assuma um tom levemente cômico e constraste com a atmosfera de “glamour” presente no universo drag, há um declínio das atenções para a imagem que o espetáculo traz: corpos libertos de padronizações e preceitos, energias-almas que se moldam e travestem conforme suas vontades e paixões.

Se errar é humano
E eu sou humano
Então eu
Pleno em minhas
Imperfeições
E finito
Em minha infinidade
Eu e nada mais
Que eu
Sou o pecado
 E como é bom ser eu…
— Henrique Tardis 

Dessa forma, seguindo tais linhas de pensamento, a teatralidade ainda que não expresse de maneira direta, denota as falhas no constipador tradicionalismo e conservadorismo na sociedade.

Antes de qualquer coisa, o espetáculo “Deusas da Noite” gera um grito de reivindicações e denúncias. A obra revela a naturalidade de se ser como se quer, nos faz por as mãos sobre a cabeça e refletir sobre as realidades distópicas que nos circundam, como viver em um país com um alto índice de mortalidade do grupo LGBTQIA+ devido a transfobia, homofobia e outros pensamentos nocivos de ódio, arcaicos e fundamentados em discursos hegemônicos.

Em realidade a teatralidade transmite o desejo latente e progressista de que qualquer um seja como queira ser, para que qualquer um assuma seu posto de divino-pleno de si e se desfaça de qualquer amarra, seja biológica, social dogmática ou qualquer outra. É natural ser e que este “ser” seja à maneira que o indivíduo, em suas particularidades e desejos, bem entenda.

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