Vozes amanhecidas | Crítica sobre “Deslenhar”

por Vendo Teatro
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Por Luiz Diego Garcia.
Recife, Maio de 2019.
Foto: Leandro Lima

VOZES AMANHECIDAS

Um suco é servido casualmente; de manga. No segundo gole os que bebem se entreolham. Gengibre. A experiência do espetáculo Deslenhar, primogênito do Teatro Miçanga composto por Amanda Pegado, André Alencar, Fernando Rybka e Geraldo Monteiro, assemelha-se muito a surpresa de descobrir o gengibre acentuado naquele suco de manga: toma o espectador de arroubo pela sua doçura sem deixar de proporcionar ao paladar a complexidade do ardor.

Há, ao longo do trabalho, diversos momentos-gengibre que não valem ser citados, permitindo assim que o público os deslenhe. Em linhas gerais, o espetáculo tem como ponto de partida o conto A Fogueira, do moçambicano Mia Couto, e segue a coser as histórias de Eterninha e Perpétuo, dois idosos que estão próximos de recolher suas asas dessa vida. A partir desse mote, os que aqui chamarei encenatores, desenvolvem acronologicamente a trajetória de tais personagens.

É uma encenação batida no pilão, com mãos que se revezam nos deveres; cuidado coletivo. Em cena, Amanda Pegado, André Alencar e Fernando Rybka transitam entre personagens, são narradores e contadores da história, operam luz, confeccionam sons, até brincam com fogo; e nessa coreografia diversificada de execuções precisas, ver o carinho lambuzando tais encenatores é contagiante, há uma delicadeza que pinga dos queixos.

Voz e corpo nunca estiveram separados. Amanda Pegado transita de estados energéticos com a fluidez que o texto pede, brinca com vozes, mas é na precisão do revelar íntimo das personagens que atriz brilha; há em suas mãos uma lupa que desmonta o espectador com sua abundancia de signos. Explosão. De risadas. André Alencar explode aqui e ali com seu tempo cômico que, quando muito, só respira e a leveza se instaura; agridoce é a comédia no trabalho do ator. Há um momento, no entanto, longe de ser cômico por essência, em que Alencar protagoniza uma dança que transborda um poema físico, não bastassem habilidades de cantor, em Deslenhar o ator também se mostra um eficaz violonista para a trilha composta pelo grupo. Então, com o charme de quem tem nas mãos malabares, Fernando Rybka inunda a plateia de gentileza e convoca o público a olhar mais de perto; o cuidado do ator na manipulação dos objetos de cena é primoroso, tanto quanto seu trabalho de corpo que, preciso, colore a experiência.

De coração aberto o grupo assina a dramaturgia, encenação, iluminação, sonoplastia, trilha sonora e até a camisa de quem está lendo. O figurino eficaz e funcional fica a cargo de Maria Agrelli e a produção é feita por Bárbara Souza e Camila Mendes.

A experiência que se deslenha ao longo de aproximados 45 minutos é encantadora, poética e, em tempos noturnos, necessária. Que esse pé de manga que o Teatro Miçanga plantou na arte frutifique em abundância; um grande viva a essas vozes que amanhecem.

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